PROCRASTINAÇÃO DAS INSTRUÇÕES PROCESSUAIS NO ÂMBITO DOS TRIBUNAIS DE CONTAS

Por Ismar Viana

A Lei nº 13.869/2019, em seu artigo 31, positivou que configura abuso de autoridade “estender injustificadamente a investigação, procrastinando-a em prejuízo do investigado ou fiscalizado”.

Essa “novatio legis” incriminadora, ao abrir margem para enquadramento de agentes que atuam nas esferas administrativa e controladora, demanda uma análise das condutas e elementos normativos do tipo sob a perspectiva do sistema de regras processuais e de funcionamento dos Tribunais de Contas do Brasil, até para aferir a presença do dolo do agente controlador.

Assim, importa ao aplicador saber: O termo investigação alcança as esferas administrativa, judicial e controladora? Quem pode figurar como sujeito ativo do crime? O que pode vir a ser considerado retardo instrutório injustificado no âmbito dos Tribunais de Contas?

Em primeiro lugar, faz-se necessário saber se a investigação a que aduz o dispositivo trata tão somente da apuração de infração criminal ou se também alcança a apuração de infrações de natureza cível e administrativa, que podem ocorrer, por exemplo, no bojo de procedimentos investigativos prévios, de instruções processuais de controle externo, ou, ainda, de sindicâncias ou inquéritos administrativos.

É que, diversamente dos arts. 27 e 30 da lei de abuso, que trazem menções expressas, no art. 31 o legislador usou genericamente o termo investigação. Essa expressão, contudo, também é utilizada no parágrafo único do art. 54 da Lei orgânica do TCU, do que se depreende que a referida tipificação abrange investigações levadas a cabo por instituições judiciais, administrativas e controladoras, conclusão corroborada em razão do uso do termo fiscalizado, trazido ao final do mencionado art. 31.

Diante da redação do tipo, que não restringiu à investigação criminal, exclusivamente, e a partir do conceito de criminalização primária e das relações do Direito Penal com outros ramos do Direito, especialmente o Administrativo, é possível constatar que o legislador buscou garantir que o funcionamento dos órgãos de investigação, fiscalização e controle possibilitasse o exercício do poder estatal dentro de um tempo razoável, de modo a não acarretar prejuízo ao investigado ou fiscalizado, tendo em vista que o bem jurídico tutelado é a razoável duração do processo [1], cuja matriz constitucional (art. 5º, LXXVIII) abrange processos judiciais e administrativos, além de assegurar os meios que garantam a celeridade na sua tramitação.

A opção pelo termo investigação, entretanto, impõe necessário cuidado quando da perquirição do sujeito ativo do crime, eis que não alcança toda a persecução, mas apenas a fase da investigação, e daí advém a necessidade de esclarecer a diferenciação entre as processualizações das investigações na esfera penal e na esfera de controle externo.

No curso de uma instrução processual penal, a conduta de magistrado não é alcançada pelo dispositivo, eis que a persecução penal é delimitada pelas fases investigativa e efetivamente processual, ao contrário do que ocorre com a processualização no âmbito dos Tribunais de Contas, em que as três funções processuais são concentradas num só órgão, o que demanda, por maior razão, a delimitação clara das funções auditorial, ministerial e judicante, até para fins de repartição de responsabilidade pessoal no plano processual.

Isso porque nos processos de controle externo, a investigação e imputação de responsabilidade se materializam em fase anterior à atuação do Parquet de contas, que atua somente após o encerramento da fase de instrução, de modo que o sujeito ativo de eventual crime será o relator do processo, a quem é incumbida a presidência da instrução, nos termos do art. 157 do Regimento Interno do TCU, texto reproduzido pelos regimentos internos de Tribunais de Contas dos entes subnacionais.



Nesse sentido é o escólio de Renato Brasileiro de Lima, para quem “não é qualquer agente público que pode figurar como sujeito ativo do delito sob análise. Para tanto, o agente público deve ter atribuição para presidir a investigação”.

Deve-se observar, ainda, que o dispositivo exige que a conduta “estender” esteja associada ao elemento “injustificadamente”, impondo ao aplicador ter que conhecer a processualização das competências do órgão fiscalizador, ou não terá como aferir o que poderia ser considerado injustificado dentro do sistema.

Em relação aos Tribunais de Contas, deverá o aplicador da nova lei de abuso ter conhecimento, especialmente, sobre os prazos para a oferta de manifestações técnicas, a metodologia de distribuições de processos e a forma como se dá o exercício das garantias processuais, na fase de investigação no âmbito do Controle Externo, elementos que lhe possibilitarão saber, por exemplo, se diligências extraordinárias e deferimentos de pedidos de reaberturas de instruções processuais guardam ligação com a complexidade dos achados de auditoria discutidos no processo ou se porventura foram utilizadas como meio para a legitimação de procrastinação almejada por agentes controladores, o que pode revelar, nesse caso, o especial fim de agir desses agentes.

Como a forma é limitadora do abuso de poder, disso decorre a necessidade de justificação de descumprimentos de prazos preestabelecidos para a oferta de manifestações técnicas e de encerramento de fases instrutórias, bem como de eventuais determinações de reaberturas de instruções processuais, não suprindo esse dever de justificação a mera alegação do argumento da incompletude da instrução, não sendo suficiente, também, a mera invocação abstrata do princípio da busca da verdade real, de aplicação subsidiária aos processos de controle externo.

Logo, a prudência induz que o relator, ao receber pedidos de reabertura de instruções, submeta-os à análise das unidades técnicas de instrução, órgãos de auditoria de controle externo, instando-as a se manifestarem conclusivamente sobre o pleito de reabertura, justificando se o pedido e a documentação a ele acostada têm ou não o condão de alterar o panorama fático-jurídico do processo, sob pena de a reabertura servir de embaraço à instrução, prologando a duração do processo e dando azo a eventuais reconhecimentos de prescrição da pretensão punitiva e ressarcitória estatal, dentro e fora da esfera de controle externo, podendo ensejar a responsabilização cível e administrativa, inclusive no que tange à responsabilização-reparação decorrente de prejuízos anormais ou injustos resultantes do processo ou da conduta desses agentes, conforme aprofundamos no livro “Fundamentos do Processo de Controle Externo” [2].

Para além disso, a configuração do tipo exige que a procrastinação injustificada se dê em prejuízo do fiscalizado, expressão que abrange o agente responsável ou o regular andamento das atividades da própria unidade jurisdicionada objeto da fiscalização, tendo em vista a “dupla subjetividade passiva”, que alcança “a pessoa física ou jurídica diretamente atingida ou prejudicada pela conduta abusiva” em fiscalização, ou seja, em iniludível excesso ou desvio de poder, principalmente quando se leva em conta que também se inserem no rol de bens jurídicos tutelados pelo art. 31 “a dignidade da função pública e o prestígio de que o poder público deve desfrutar perante os administrados”, consoante conclui o processualista penal Renato Brasileiro.

Dessarte, a título de exemplo, a demora injustificada na apresentação de manifestação técnica conclusiva de mérito, numa representação em que tenha sido concedida a expedição de medida cautelar determinando a suspensão do curso de um procedimento licitatório, pode expor a imagem e comprometer a credibilidade do gestor e da unidade jurisdicionada objeto da fiscalização, podendo configurar o crime de abuso de autoridade, se ficar demonstrada a ausência de motivação para o retardo instrutório, além do especial fim de agir a que alude o art. 1º da Lei.

Vê-se, pois, que a presente tipificação deverá induzir mudanças na processualização das competências constitucionalmente conferidas aos Tribunais de Contas, que terão que preestabelecer prazos para a oferta de manifestações técnicas, preliminares e conclusivas de mérito, definindo as situações de complexidade elevada que exigem maior estudo na fase de instrução, ainda que em rol exemplificativo, com vistas a evitar subjetivismos desarrazoados do aplicador da norma, especialmente no que tange à conduta “estender” e ao elemento normativo do tipo “injustificadamente”.

Aliás, a positivação expressa desses prazos, no âmbito do Controle Externo, militará em favor dos agentes controladores, mitigando sua exposição a interpretações casuísticas e que não guardam compatibilidade com a proteção maior do bem jurídico tutelado pelo tipo penal incriminador, o direito à razoável duração do processo, nas esferas administrativa, judicial e controladora, evitando que se sujeitem à responsabilização criminal por abuso de autoridade.

Por fim, não se pode olvidar que a estabilidade das relações jurídicas travadas entre administrados e Administração Pública e a proteção da confiança dos cidadãos nas instituições a que visa alcançar o princípio da segurança jurídica não serão eficazes diante de respostas estatais intempestivas, o que têm servido para a legitimação de atos lesivos ao patrimônio público, pela via, inclusive, do reconhecimento da prescrição da pretensão ressarcitória (assunto já tratado em artigo publicado aqui [3]), numa análise do RE 636.886 [4], cujo julgamento foi no sentido de reafirmar que a imprescritibilidade do dano ao erário estará condicionada à demonstração da prática de ato doloso de improbidade administrativa, entendimento consolidado no tema 897 do STF.

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[1] Lima, Renato Brasileiro de. Nova Lei de Abuso de Autoridade. Salvador. Editora JusPodivm, 2020. p. 288.

[2] VIANA, Ismar. Fundamentos do Processo de Controle Externo: uma interpretação sistematizada do texto constitucional aplicada à processualização das competências dos tribunais de contas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019. p. 206-217.

[3] Disponível em: Dano ao erário: o STF, a prescrição e os Tribunais de Contas

[4] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 636.886-AL, Relator Min. Alexandre de Moraes, julgamento 20/04/2020 – PLENO – sessão virtual. DJE n.104, divulgado em 28/04/2020.

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ISMAR VIANA – Mestre em Direito. Auditor de Controle Externo. Professor. Advogado. Autor do livro "Fundamentos do Processo de Controle Externo".


Fonte: jota.info.

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