OFÍCIO 027/2020 DA AUDTCU

Brasília, 7 de abril de 2020.


À Excelentíssima Senhora Senadora

SIMONE TEBET

Presidente da Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal


Assunto: Votação da PEC nº 10, de 2020 por Plenário Virtual com riscos para cidadania.


Excelentíssima Senhora Presidente.


A ASSOCIAÇÃO DA AUDITORIA DE CONTROLE EXTERNO DO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO | AUD-TCU, pessoa jurídica de direito privado de caráter homogêneo que no Tribunal de Contas da União representa Auditores Federais de Controle Externo-Área de Controle Externo do Tribunal de Contas da União, ao tempo que parabeniza e louva a declaração de Vossa Excelência[1] divulgada pelo O Antagonista vem, respeitosamente, apresentar argumentos jurídicos adicionais aos expostos no Ofício nº 22/2020- AUD-TCU/PR, de 3/04/2020, sobre a Proposta de Emenda Constitucional nº 10, de 2020, aprovada pelo Plenário Virtual da Câmara dos Deputados[2].

Sobre os limites implícitos de reformar a Constituição Cidadã expostos no Ofício mencionado, convém subsidiar o debate com a reprodução da percuciente pesquisa realizada pela Advogada Danielli Xavier Freiras[3] , seguinte entendimento respaldado em julgados do STF, a saber:

 

“Pois bem, diante do exposto acima, o Poder Legislativo, sabendo que não pode deflagrar o processo legislativo de determinadas leis, cuja iniciativa está reservada ao Chefe do Poder Executivo, resolve seguir caminho tortuoso para alcançar fim contrário aos ditames da Constituição Federal: deflagram o processo legislativo de Emenda à Constituição – o qual sequer há a participação do Presidente/Governador.

Fazendo isso, os membros do referido Poder Legislativo logram alcançar o fim pretendido: legislar, via reforma da Constituição, sobre matéria que não poderiam.

Neste ponto, chegamos à inexorável questão: como compatibilizar estes preceitos de iniciativa reservada do Chefe do Poder Executivo com as propostas de emenda à Constituição (as quais são de iniciativa concorrente, ou seja, não possuem iniciativa reservada)?

Podemos observar que não estamos, no presente caso em análise, diante de uma limitação expressa ao Poder Constituinte Derivado Reformador, mas sim de uma limitação implícita. Ou seja, existem regras claras de como o processo legislativo deve ocorrer. E essas regras não podem, por óbvio, serem subvertidas. As regras do jogo não podem ser alteradas para se chegar a resultado diverso.

Ou seja, é caso evidente de tentativa de contornar norma expressa, sendo isso incabível: “A existência de limitação explícita e implícita que controla o Poder Constituinte derivado-reformador é, igualmente, reconhecida por Pontes de Miranda, Pinto Ferreira e Nelson de Souza Sampaio, que entre outros ilustres publicistas salientam ser implicitamente irreformável norma constitucional que prevê as limitações expressas (CF, art. 60), pois, se diferente fosse, a proibição expressa poderia desaparecer, para, só posteriormente, desaparecer, por exemplo, as cláusulas pétreas. Além disto, observa-se a inalterabilidade do titular do Poder Constituinte derivadoreformador, sob pena de também afrontar a Separação dos Poderes da República.” (MORAES, 2011, p. 693-694).

Assim, no que pertine às emendas à Constituição, quando a matéria a ser legislada não for materialmente constitucional, será imprescindível a observância da iniciativa do Chefe do Poder Executivo com o intuito de afastar eventual burla que venha a ocorrer ao processo legislativo.

O Supremo Tribunal Federal tem estado atento a este tipo de prática. Inclusive recentemente no julgamento da ADI 2654, ocorrido no dia 13/08/2014, quando aplicando precedentes da Corte, declarou inconstitucional a “Emenda Constitucional estadual nº 24-AL, de iniciativa parlamentar, que alterou o art. 203, da Constituição do Estado de Alagoas, ao introduzir um representante indicado pela Assembléia Legislativa na composição do Conselho Estadual de Educação, bem como ao regular o processo de escolha dos respectivos membros.”
(grifei)

A autora também destaca alguns precedentes do STF que merecem transcrição para subsidiar o debate:

 

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. EMENDA CONSTITUCIONAL QUE DISPÕE SOBRE REGIME JURÍDICO DOS SERVIDORES MILITARES DO ESTADO DE RONDÔNIA. PROJETO ORIGINADO NA ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA. INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL. VÍCIO RECONHECIDO. VIOLAÇÃO À RESERVA DE INICIATIVA DO CHEFE DO PODER EXECUTIVO. AÇÃO JULGADA PROCEDENTE. I -A luz do princípio da simetria, a jurisprudência desta Suprema Corte é pacífica ao afirmar que, no tocante ao regime jurídico dos servidores militares estaduais, a iniciativa de lei é reservada ao Chefe do Poder Executivo local por força do artigo 61, § 1º, II, f, da Constituição. II - O vício formal não é superado pelo fato de a iniciativa legislativa ostentar hierarquia constitucional. III - Ação direta julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade do artigo 148-A da Constituição do Estado de Rondônia e do artigo 45 das Disposições Constitucionais Transitórias da Carta local, ambos acrescidos por meio da Emenda Constitucional 56, de 30 de maio de 2007.
(ADI 3930, Relator (a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, julgado em 16/09/2009, DJe-200 DIVULG 22-10-2009 PUBLIC 23-10-2009 EMENT VOL-02379-02 PP-00310)

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. EMENDA CONSTITUCIONAL QUE DISPÕE SOBRE REGIME JURÍDICO DOS SERVIDORES PÚBLICOS DO ESTADO DE MATO GROSSO. PROJETO ORIGINADO NA ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA. INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL. VÍCIO RECONHECIDO. VIOLAÇÃO À RESERVA DE INICIATIVA DO CHEFE DO PODER EXECUTIVO. EXISTÊNCIA, TAMBÉM, DE VÍCIO DE INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL. LIMITE ÚNICO. SUBSÍDIOS DE PARLAMENTAR LIMITADO AO DOS DESEMBARGADORES. VINCULAÇÃO DE ESPÉCIES REMUNERATÓRIAS. IMPOSSIBILIDADE. AÇÃO JULGADA PROCEDENTE. I - A iniciativa de lei que disponha sobre o regime jurídico dos servidores públicos é reservada ao Chefe do Poder.

Executivo local por força do artigo 61, § 1º, II, c, da Constituição Federal. II - Não se aplica o limite único fixado no § 12, do art. 37, da Constituição Federal, aos subsídios dos Deputados Estaduais e Distritais e dos Vereadores conforme estabelece esse mesmo dispositivo. A lei local impugnada não faz a referida ressalva. III - E vedada a vinculação de quaisquer espécies remuneratórias, para efeito de remuneração de pessoal do serviço público, nos termos do art. 37, XIII, da Constituição Federal. IV - Ação direta julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade da Emenda Constitucional 54, de 26 de agosto de 2008, que modificou o art. 145, §§ 2º e 4º, da Constituição do Estado de Mato Grosso.

(ADI 4154, Relator (a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, julgado em 26/05/2010, DJe-110 DIVULG 17-06-2010 PUBLIC 18-06-2010 EMENT VOL-02406-02 PP-00246)
Ação direta de inconstitucionalidade. Artigo 245 da Constituição do Estado do Parana. Vinculação de receitas obtidas judicialmente da União ao pagamento de débitos judiciais do Estado. Ofensa ao regramento constitucional dos precatórios. Vício formal. Iniciativa legislativa do chefe do Poder Executivo. Vinculação orçamentária. Confirmação da liminar. Procedência da ação. 1. O preceito atacado cria forma transversa de quebra da ordem de precedência dos precatórios ao efetivar a vinculação das receitas obtidas com indenizações ou créditos pagos ao Estado pela União ao pagamento de débitos de idêntica natureza. Não encontra amparo constitucional a previsão, porquanto seria instalada, inevitavelmente, uma ordem paralela de satisfação dos créditos, em detrimento da ordem cronológica. Impossibilidade de regramento da matéria por norma de hierarquia inferior. Precedentes. 2. O dispositivo da Constituição do Estado do Parana, ao efetuar vinculação de receita de caráter orçamentário, qual seja, a obtida do ente central por recebimento de indenizações ou de outros créditos, incorre em vício de natureza formal, uma vez que a Carta Política exige que a iniciativa legislativa de leis com esse conteúdo seja do chefe do Poder Executivo. Precedentes. 3. Ação julgada procedente.

(ADI 584, Relator (a): Min. DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 19/03/2014, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-070 DIVULG 08-04-2014 PUBLIC 09-04-2014)
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MILITARES. REGIME JURÍDICO. INICIATIVA PRIVATIVA DO CHEFE DO PODER EXECUTIVO. PROCEDÊNCIA DO PEDIDO. Emenda Constitucional 29/2002, do estado de Rondônia. Inconstitucionalidade. À luz do princípio da simetria, é de iniciativa privativa do chefe do Poder Executivo estadual as leis que disciplinem o regime jurídico dos militares (art. 61, § 1º, II, f, da CF/1988). Matéria restrita à iniciativa do Poder Executivo não pode ser regulada por emenda constitucional de origem parlamentar. Precedentes. Pedido julgado procedente.
(ADI 2966, Relator (a): Min. JOAQUIM BARBOSA, Tribunal Pleno, julgado em 06/04/2005, DJ 06-05-2005 PP-00006 EMENT VOL-02190-01 PP-00178 LEXSTF v. 27, n. 319, 2005, p. 77-81 RTJ VOL-00194-01 PP00171)” – grifos no original.

E arremata a autora:

 

“Percebe-se, portanto, que a jurisprudência do STF tem sido bastante combativa às tentativas de burla aos ditames constitucionais.

Em verdade, não se pode fazer tábula rasa dos princípios constitucionais, notadamente o Princípio da Separação dos Poderes, que, no regime democrático, serve para emprestar equilíbrio aos Poderes Constituídos, garantido pelo sistema de check and balances – o qual fora consagrado no Direito americano. Por outro lado, também, a limitação implícita que impossibilita a alteração das limitações expressas foi reconhecida e consagrada.

Acrescente-se ainda que “a própria natureza do poder constituinte de reforma impõe-lhe restrições de conteúdo. É usual, nesse aspecto, a referência aos exemplos concebidos por Nelson de Souza Sampaio, que arrola como intangíveis à ação do revisor constitucional: a) as normas concernentes ao titular do poder constituinte, porque este se acha em posição transcendente à Constituição, além de a soberania popular ser inalienável; b) as normas referentes ao titular do poder reformador, porque não pode ele mesmo fazer a delegação dos poderes que recebeu, sem cláusula expressa que o autorize; e c) as normas que disciplinam o próprio procedimento de emenda, já que o poder delegado não pode alterar as condições da delegação que recebeu.” (MENDES, 2010, p. 305)” - grifei.

Importante reiterar que não há, no texto da PEC nº 10/2020, nenhuma matéria que não possa ser disciplinada por lei complementar, lei ordinária, decreto legislativo ou medida provisória, sendo totalmente desnecessário alterar a Constituição Cidadã e abrir precedente perigoso que pode levar a desestabilização político-social.

É equivocado – senão falacioso - dizer que o descumprimento da regra de ouro em 2020 exige reforma constitucional, para que se possa atender às necessidades da calamidade pública. A própria Carta Política prevê a ressalva, conferindo ao Congresso Nacional plenos poderes para autorizar, por lei ordinária aprovada por maioria absoluta, a realização de operações de crédito em patamar superior ao da despesa de capital (art. 167, inciso III), como, vale a pena recordar, ocorreu no ano passado para cobrir o excedente do exercício de R$ 185,3 bilhões (Lei Ordinária nº 13.843, de 17/06/2019), sem que se tenha cogitado qualquer irregularidade ou possibilidade de rejeição das contas presidenciais de 2019 por essa razão.

Pode, ainda, o Congresso Nacional estabelecer, em lei complementar que trate de finanças públicas, que as despesas para o enfrentamento da calamidade pública nacional não devem ser consideradas para fins de cálculo da regra de ouro, compatibilizando a medida com as previsões dos arts. 148, inciso I (que prevê a instituição de empréstimo compulsório), 167, § 3º (abertura de crédito extraordinário por medida provisória), e 136, § 1º, inciso II (decretação de estado de defesa).

Cumpre anotar que o art. 32, § 3º da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) já disciplina como deve ser apurada a regra de ouro, nos seguintes termos:

 

“Art. 32. O Ministério da Fazenda verificará o cumprimento dos limites e condições relativos à realização de operações de crédito de cada ente da Federação, inclusive das empresas por eles controladas, direta ou indiretamente.

§ 1º O ente interessado formalizará seu pleito fundamentando-o em parecer de seus órgãos técnicos e jurídicos, demonstrando a relação custo-benefício, o interesse econômico e social da operação e o atendimento das seguintes condições:
...
V - atendimento do disposto no inciso III do art. 167 da Constituição;
...

§ 3º Para fins do disposto no inciso V do § 1º, considerar-se-á, em cada exercício financeiro, o total dos recursos de operações de crédito nele ingressados e o das despesas de capital executadas, observado o seguinte:

I - não serão computadas nas despesas de capital as realizadas sob a forma de empréstimo ou financiamento a contribuinte, com o intuito de promover incentivo fiscal, tendo por base tributo de competência do ente da Federação, se resultar a diminuição, direta ou indireta, do ônus deste;

II - se o empréstimo ou financiamento a que se refere o inciso I for concedido por instituição financeira controlada pelo ente da Federação, o valor da operação será deduzido das despesas de capital;”
(grifei)

Nada impede, aliás seria bastante salutar, a previsão de mais um inciso no § 3º do art. 32 da LRF, com vistas a disciplinar que as operação de crédito, inclusive as decorrentes de emissão de títulos pelo Tesouro Nacional, destinadas a despesas para enfrentamento de calamidade pública nacional reconhecida pelo Congresso Nacional não será computada para fins do disposto no inciso III do art. 167 da Lei Maior.

A AUD-TCU louva a iniciativa do Congresso Nacional de dar uma pronta resposta à sociedade no enfrentamento da calamidade pública nacional. Porém, em razão do efeito extremamente perturbador decorrente das restrições impostas pela grave situação de emergência sanitária, reformas constitucionais neste período, muito mais grave e restritivo do que as intervenções realizadas nos Estados do Rio de Janeiro e Roraima - que mantiveram o Congresso Nacional de portas abertas para a sociedade -, devem ficar suspensas nas duas Casas Legislativas, de forma a assegurar a necessária estabilidade político-social para o enfrentamento dos efeitos da crise sanitária de proporções mundiais.

Há que se considerar, ainda, o elevado efeito multiplicador da iniciativa da Câmara dos Deputados de reformar a Constituição da República através de um rito legislativo de exceção, que suprime os debates presenciais nas comissões e demais colegiados da Casa, da participação social, podendo muito provavelmente se repetir nas Casas Legislativas dos entes subnacionais, constituindo grave ameaça para população e para as empresas, que poderão ser substancialmente afetadas sem que haja um amplo debate com os atores interessados e afetados por reformas estruturantes.

Agradecendo a atenção costumeira de Vossa Excelência, compartilho, em anexo, análise da Diretoria da AUD-TCU sobre os dispositivos da PEC nº 10, de 2020, aprovada pela Câmara dos Deputados segundo rito legislativo que de tão heterodoxo atrita com a noção de Estado Democrático e com a jurisprudência da Corte Suprema, na oportunidade em que renovo protestos de elevada estima e profunda consideração.


Cordialmente,


LUCIENI PEREIRA
Auditora Federal de Controle Externo-Área de Controle Externo do Tribunal de Contas da União
Presidente da AUD-TCU
Diretora da CNSP para Assuntos da Área Federal
Professora de Gestão Fiscal


OFÍCIO Nº 027/2020 AUD-TCU.


Fonte: AUD-TCU.

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