Situação não pode ser salvo-conduto.
Controle deve se dar na exata medida.
Logo após a declaração da Organização Mundial da Saúde classificando como pandemia a covid-19, doença causada pelo novo coronavírus, as instituições públicas brasileiras passaram a adotar medidas para reduzir o potencial risco de contágio entre os seus integrantes e, ainda, garantir o bom e regular desempenho das suas atividades, apesar do cenário de crise.
No âmbito da esfera de controle, é sabido que não há como controlar atos públicos praticados em situação de anormalidade com os mesmos mecanismos que regem atos praticados em situação de normalidade, sem qualquer mitigação, vez que aqueles exigem um diferenciado juízo de ponderação na tomada de decisões. Isso não implica dizer que tudo poderá ser feito ou que existe uma espécie de salvo-conduto para qualquer ação, pois a mitigação do controle não pode ser confundida com a ausência de controle dos bens, valores e dinheiro públicos, sobretudo porque abusos tendem a se tornar mais recorrentes em situações de instabilidade e anormalidade, terreno fértil para o arbítrio, fraude, corrupção, conforme aponta grupo de trabalho da Transparência Internacional.
Por isso, a adequação dos padrões de controle tem que ocorrer na exata medida, tão somente, sob pena de se abrir espaços para o descontrole total, para o agravamento dos efeitos da pandemia. Não obstante a previsão de situações de calamidade e emergência ter tratamento próprio na Constituição Federal, Lei Geral de Licitações e Contratos, Lei de Responsabilidade Fiscal e na Lei n. 4.320/64, por exemplo, ofertando aos agentes públicos caminhos para a superação de obstáculos que inevitavelmente surgem em situações dessa natureza, ingressou no ordenamento jurídico brasileiro, antes do reconhecimento da pandemia, a Lei n. 13.979/2020, que dispõe sobre as medidas específicas para enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente do novo coronavírus, trazendo, em seu art. 4º e seguintes, medidas que flexibilizam a forma de aquisição de bens e serviços, durante esse período de anormalidade, exatamente para evitar que haja injustificada solução de continuidade na prestação dos serviços públicos em um momento sensível da saúde pública mundial.
Se houve uma flexibilização na procedimentalização em que se pauta a aquisição de bens e serviços, com o fito de garantir agilidade na prestação dos serviços públicos, é de se esperar que em semelhante medida também ocorra na forma como a função de Controle Externo da Administração Pública é ordinariamente exercida, sendo, portanto, inevitável o afastamento de eventual rigidez na processualização das competências dessas instituições.
Contudo, o que não pode haver é a completa desnaturação da função do órgão e da forma como deve ela ser exercida, inovando, sem bases constitucionais, para uma prestação das atividades finalísticas de controle externo completamente dissociada da regularidade de atuação e da excepcionalidade da situação. Essa preocupação tem pautado a atuação de especialistas que analisaram o Projeto de Lei n. 791/2020, que objetiva alterar a Lei n. 13.979/2020 para instituir um Comitê Nacional de Órgãos de Justiça e Controle para prevenir litígios, inclusive os judiciais, relacionados ao enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente da covid-19.
É que a busca pela consensualização e contenção de eventual afã punitivista de agentes controladores não pode servir de instrumento legitimador da impunidade, encobrindo malfeitos, deixando de responsabilizar exemplarmente malfeitores, rol em que não se incluem aqueles que não agem com consciência e vontade de lesar o patrimônio público, cujo controle dos atos dar-se-á seguindo os vetores de interpretação do art. 22 da LINDB, que impõe uma análise de conduta considerando as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação do agente, mirando nas dificuldades reais do gestor e nas exigências das políticas públicas a seu cargo.
A preocupação ganha ainda mais relevo diante da proposta de inclusão do art. 7º-I, cujo teor, ao confundir as instâncias executiva, controladora e judicial, dispõe que o processo de contratação decorrente desse período de anormalidade poderá ser submetido à chancela do ministro da CGU e de um ministro do TCU designado pelo seu presidente, e, após a chancela, à homologação do presidente do STF, ouvido o procurador-geral da República, sem prejuízo da imediata execução do contrato, perfazendo uma espécie de “visto ou controle prévio”.
Além disso, os controles interno, externo e judicial atuam em condições distintas, têm ritos próprios que materializam as suas ações, que têm razão de agir e efeitos pautados em fundamentos diversos, não se prestando a atuação do controle interno da Administração Pública a afastar a atuação do Controle Externo.
Nesse sentido, a chancela do ministro-chefe da CGU, órgão que integra o Poder Executivo, cargo de livre nomeação e exoneração, até poderia ser sinalizador de eventual boa-fé daquele que praticou o ato, mas, frise-se, não se presta a ser um ato abonador de conduta capaz de impedir a atuação do TCU, no regular exercício do controle externo, que não se vincula a nenhum dos Poderes da República, tendo sido conferidas a seus agentes prerrogativas diferenciadas, mas que não podem ser exercidas fora dos limites impostos pela Constituição.
Aliás, o próprio art. 71 da CF/88 é claro ao dispor que “ao TCU compete”, não preconizando o texto constitucional que ao ministro do TCU compete. Se quisesse o legislador Constituinte que apenas um agente público decidisse todas as matérias decorrentes do extenso rol de competências do aludido artigo, não teria criado um órgão colegiado julgador composto por 9 ministros, não teria invocado, no art. 73, a necessidade de observância do art. 96, I, “a”, fundamento de onde se extrai o art. 1º, §3º, I da LOTCU, de cuja leitura se vê que as decisões nos Tribunais de Contas são integradas pelos votos dos relatores, dos quais devem necessariamente constar as conclusões das manifestações dos Órgãos de Instrução, o parecer do Ministério Público que atua junto ao TCU, colegialidade processual-decisória que é condição de legitimidade.
É bem verdade que a atuação interinstitucional pode dificultar que atos decorrentes de fraudes e corrupção deixem de ser objetos de apuração e responsabilização, não se pode, entretanto, concentrar em torno de um só agente público a missão de desempenhar funções distintas, especificamente no caso dos Tribunais de Contas, em que as decisões são marcadas pela colegialidade judicante e dependem da oitiva de um procurador do MPC, que deve ser precedida da manifestação técnica de um auditor de controle externo.
Diante disso, parece não superar o filtro de constitucionalidade a previsão de presidente do TCU, que, a propósito, não atua em processos de controle externo, poder designar qualquer agente para, sozinho, materializar as competências elencadas pelo Constituinte ao Tribunal de Contas da União, cujo exercício depende de um devido, justo e adequado processo legal na esfera de controle externo, que, diante das circunstâncias de anormalidade de saúde pública, pode ser mitigado sem ser desfigurado, conferindo o alcance da celeridade processual-decisória que a situação reclama, não havendo risco, portanto, de que eventual falta de maturidade funcional de agentes públicos dê azo a ações institucionais que não sejam alicerçadas na necessidade e razoabilidade, vindo a agir quando não deveriam agir ou deixando de agir quando a situação reclamar a sua atuação.
Fonte: poder360.com.br.