Em texto publicado nesta segunda-feira (28) no jornal Estadão, o Auditor de Controle Externo e vice-presidente da ANTC, Ismar Viana, aprofunda o debate sobre a regular ocupação de cargos públicos e as causas para o agravamento da crise fiscal e previdenciária. Confira a íntegra do artigo “A adequada prestação dos serviços públicos à sociedade se alicerça na profissionalização, eficiência e impessoalidade do funcionalismo público”.
INVOCAR A EFICIÊNCIA E ATINGIR A EFICIÊNCIA AS AVESSAS NA PRESTAÇÃO DOS SERVIÇOS PÚBLICOS
Nos últimos meses, vem ecoando o discurso de que o gasto com o funcionalismo público no Brasil consome desarrazoado volume de recursos que poderiam ser investidos em áreas sensíveis da administração pública, consoante se infere da matéria intitulada “gasto da união com elite do funcionalismo é o triplo da média com os demais servidores”, publicada em “O Globo”, publicada em julho deste ano, cujo levantamento, atribuído ao Ministério da Economia, dá conta de que entre as carreiras mais bem pagas em âmbito federal estão auditores e delegados.
Mais recentemente, no último dia 09/10, matéria veiculada no portal “G1” trouxe dados de um estudo atribuído ao Banco Mundial revelando que, entre 2008 e 2018, a remuneração média dos servidores do Executivo Federal avançou 14,1% acima da inflação – com forte expansão até 2010, indicando aumento real de 25,9% no gasto total com pessoal. Com relação ao funcionalismo estadual, a matéria revelou que o número de servidores ficou praticamente estável (0,5%) no período analisado, que vai de 2003 a 2017, enquanto a remuneração média disparou 78% acima da inflação.
Para a instituição financeira, o êxito de uma futura reforma administrativa está condicionado à adoção de medidas como a redução dos salários iniciais e aumento do tempo médio até o topo das carreiras, além da redução do número delas, que atingem, segundo o Banco Mundial, o número de trezentas, não avançando o estudo, contudo, na discussão sobre gastos públicos que decorrem do excesso de cargos em comissão, muitos dos quais voltados a atividades burocráticas ou operacionais, sem natureza de direção, chefia ou assessoramento, criados mediante leis que sequer observam a obrigatoriedade constitucional da fixação das respectivas atribuições do cargo.
Diante do manifesto interesse do Governo Federal em emplacar uma reforma administrativa e para equilibrar o debate sobre os termos dessa reforma, foi instalada a “Frente Parlamentar Mista em Defesa do Serviço Público”, visando lançar luz nas razões de cunho técnico que sustentam a necessidade de estabilidade como condição para viabilizar o desempenho das atividades exclusivas de estado, prerrogativa para fazer a lei ser cumprida, portanto, e não privilégio – como de forma equivocada e recorrente tem sido levado ao conhecimento público.
Ancorando-se no Texto Constitucional, se há injustificada evolução remuneratória dos agentes públicos, essa anomalia se deve à inobservância do disposto no artigo §1º do 39 da CF, com redação dada pela EC 19/98 – notabilizada pela busca da eficiência e profissionalização da Administração Pública –, cujo teor condiciona a fixação dos padrões de vencimentos dos agentes públicos à natureza, grau de responsabilidade e complexidade dos cargos componentes de cada carreira, requisitos para a investidura, e, ainda, às peculiaridades do cargo, preceito constitucional fundado na necessidade de manutenção do equilíbrio fiscal das contas públicas.
Sem ingressar no mérito da necessidade ou não de uma nova reforma administrativa, o que se busca é demonstrar que os dados expostos pelo Banco Mundial, especificamente quanto ao aumento da remuneração média dos servidores públicos dos estados, demandam uma investigação mais profunda das causas que ensejaram esse aumento, até para evitar que a reforma, ao invés de contribuir com a solução do problema, venha a agravá-lo.
Isso porque a reforma administrativa anunciada se alicerça no discurso da busca pela eficiência na prestação dos serviços públicos, o que impõe, por consequência lógica, o aprofundamento do debate em torno de soluções que não se distanciem dos fins originariamente propostos, sob pena de imprimir retrocessos ao funcionamento do Estado brasileiro.
Assim, partindo-se do pressuposto de que o cidadão é detentor do direito fundamental à boa gestão pública e do direito à probidade na aplicação dos recursos públicos, a arregimentação de pessoal para a prestação dos serviços incumbidos ao Estado deve mirar na eficiência, cujo alcance passa por um eficiente processo de escolha de agentes aptos para o desempenho das atribuições de cada cargo público.
Esse processo, por opção do Legislador Constituinte originário, é o concurso público específico, cuja razão de existência não se encontra adstrita, tão somente, à observância dos princípios da impessoalidade e moralidade, indo além de estimular a proliferação de ambientes meritocráticos, dentro e fora da Administração Pública, impulsionando o acesso aos bancos escolares, prestando-se, também, à otimização dos recursos públicos investidos, visando que a contraprestação pecuniária dos Agentes Públicos seja equilibrada e compatível com as características do cargo para o qual esses agentes foram selecionados para ocupar.
Assim, não se pode olvidar que o concurso público busca garantir a profissionalização da Administração Pública e a sustentabilidade fiscal na atividade financeira do Estado, de modo que os serviços públicos sejam efetivamente prestados por quem demonstrou aptidão para tanto, buscando romper, também, com ultrapassadas práticas patrimonialistas de apadrinhamentos, o que revela, pois, que a busca pela eficiência reside na origem, na seleção de pessoal, de modo que eventuais propostas de fusão de carreiras, em verdade, subvertem a lógica da eficiência, na medida em que abrem espaço para que serviços públicos sejam prestados por quem não demonstrou encontrar-se preparado para tanto, agentes públicos que foram selecionados para o desempenho de atividades menos complexas, de nível intermediário, para cujo ingresso foram exigidas condições distintas de preenchimento.
E isso não se trata apenas de grave ofensa ao disposto no artigo 37, II da Constituição Federal, mas de inobservância do direito fundamental à boa gestão pública, que tem raiz constitucional no artigo 175, cujo teor preconiza que incumbe ao Poder Público a prestação de serviços públicos, deixando explícito, no inciso IV do parágrafo único, que garantir a manutenção de um serviço adequado, de qualidade, não constitui faculdade de todo aquele que age em nome do poder público, mas um dever, do que se extrai que o destinatário dessa obrigação não é tão somente o responsável direto pela prestação do serviço, mas todo o agente público cuja atuação funcional possa refletir na prestação desses serviços.
E o que tem a ver a fusão de carreiras, as transformações inconstitucionais dos cargos públicos com os dados apresentados pelo Banco Mundial?
Para além de grave ofensa ao regramento do concurso público específico, ações estatais dessa natureza agravam o desequilíbrio fiscal das contas públicas e a crise previdenciária. Isso porque, após a concretização de pleitos ilegítimos de fusão e de transformação que não levem em conta a similitude de requisitos de investidura e grau de complexidade e responsabilidade de atribuições, como recorrentemente ocorre em casos desse jaez (vide ADI 5128-SE, que tramita no STF), os ocupantes de cargos transformados terminam sendo beneficiados por equiparações remuneratórias, induzindo a erro pesquisas que têm como objeto a exposição de dados relacionados à evolução remuneratória de agentes públicos, tendo em vista que tais equiparações são equivocadamente tratadas como reajustes e revisões salariais.
Propostas assim caminham na contramão da eficiência, da impessoalidade e da moralidade administrativa, pois permitem que agentes públicos ocupantes de cargo de grau de complexidade e responsabilidade das atribuições de nível intermediário venham a ocupar cargos de grau de complexidade e responsabilidade das atribuições de nível superior, sem passarem pelo crivo do concurso público específico para tanto, o que caracteriza favorecimento de grupos em detrimento da oportunização de acesso aos demais brasileiros interessados em concorrer e demonstrar o preenchimento dos requisitos exigidos para aquele cargo público. Isso corresponde a pagar mais caro pela prestação de um serviço cujo prestador não demonstrou aptidão, levando o cidadão a questionar a eficiência alcançada com a medida estatal, eis que o serviço público passou a ser prestado por um agente público menos qualificado e que passou a perceber contraprestação pecuniária mais elevada do que a originariamente percebida. Ou seja, é invocar a eficiência, mas atingir a eficiência às avessas, na medida em que o resultado para a Administração Pública reflete pessoalidade, imoralidade e ineficiência.
Trata-se, portanto, de medida flagrantemente inconstitucional e lesiva ao patrimônio público, eis que, numa ligeira análise, atenta contra o disposto nos artigos 37, II e 39, §1º da CRFB, ato estatal que deve ser analisado, também, sob a perspectiva da economicidade a que aduz o artigo 70 da Lei Maior da República.
É que ao banir, em 1988, as formas de investidura até então admitidas para ingresso em cargos efetivos distintos, quis a Constituição que o provimento dos cargos públicos partisse de um crivo capaz de aferir a capacidade para a ocupação do correspondente cargo, tanto é assim que o texto constitucional não dispõe sobre o acesso genérico ao serviço público, mas de acesso específico a cargos e empregos públicos mediante concurso público de provas e títulos “de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego”. Significa dizer que alterações em atribuições, escolaridade, natureza, complexidade e responsabilidades do cargo, quer impliquem ou não imediatas alterações remuneratórias, caracterizam novo provimento para os atuais agentes ocupantes do cargo transformado, configurando, assim, burla ao concurso público específico, com impacto nas finanças públicas e na previdência.
Ademais, cumpre acrescentar que, com vistas a regulamentar o artigo 169 da CRFB/1988, a Lei de Responsabilidade Fiscal, além de definir os limites para a despesa com pessoal ativo e inativo, dispôs acerca das condicionantes para alterações de estrutura de carreiras e admissão ou contratação de pessoal, a qualquer título, cuja inobservância incorre em geração de despesa ou assunção de obrigação classificadas como “não autorizadas, irregulares e lesivas ao patrimônio público”.
Em apertada síntese, o artigo 169, §1° da CRFB c/c os artigos 15 a 17 da LRF estabelecem que, em se tratando de natureza obrigatória e caráter continuado (conceito que abrange criação e alterações em estruturas de cargos públicos que impliquem majoração de remunerações), as despesas criadas ou majoradas para serem executadas dependem da demonstração da adequação orçamentário-financeira e da prévia implementação de medidas compensatórias de seus efeitos financeiros, de modo que não basta, para a implementação dessas despesas, a existência de leis materialmente constitucionais e válidas, que podem ingressar no plano da existência e da validade, mas não no plano da eficácia (Acórdão TCU n° 1907/2019 – PLENÁRIO).
Dessarte, a eficiência na prestação dos serviços públicos é medida que se impõe e depende da regular ocupação dos cargos públicos, mormente quanto às atividades exclusivas de estado previstas no artigo 247 da CRFB, cuja flexibilização impacta, indubitavelmente, nos serviços públicos prestados à coletividade mantenedora do aparato estatal e destinatária direta desses serviços, seja pela precarização das condições necessárias ao exercício independente dessas atividades, atentando contra a estabilidade e o vínculo institucional imprescindíveis à concretização do interesse público, seja dando azo a ilegítimas equiparações remuneratórias entre cargos públicos de natureza, complexidade e responsabilidade distintas, agravando o desequilíbrio fiscal das contas públicas e a crise previdenciária, sujeitando o agente público à responsabilização a que aduz o §2º do artigo 37 da CRFB, ao inciso V do artigo 11 da Lei de Improbidade Administrativa.
Destaca-se, por fim, que a eficácia de estudos relacionados aos padrões remuneratórios de agentes públicos que desempenhem atividades exclusivas de estado devem levar em conta que o desempenho dessas atividades, as quais não possuem correspondência na iniciativa privada, exige que sejam elas prestadas por agentes públicos qualificadamente aptos e indiscutivelmente imparciais, principalmente em razão da possibilidade de projeção de reflexos da atuação funcional desses agentes na esfera de direitos subjetivos dos cidadãos, incumbindo ao Estado, portanto, a proteção da honra, patrimônio e liberdade, direitos fundamentais potencialmente atingidos pela atuação de auditores de controle externo, auditores fiscais, delegados de polícia, promotores, procuradores e magistrados, por exemplo, de modo que não há como vislumbrar eficiência na prestação de serviços públicos permitindo que sejam prestados por quem não demonstrou capacidade para tanto ou por quem não dispõe de vínculo institucional com o Estado suficientemente capaz de conferir condição de resistência a meros interesses passageiros de governos que porventura não se coadunem com os preceitos basilares do Estado Democrático de Direito delineados pela CRFB.
Ismar Viana é autor do Livro “Fundamentos do Processo de Controle Externo”, mestre em Direito, professor, advogado e auditor de Controle Externo.
Fonte: Comunicação ANTC com informações do ESTADÃO.