GESTÃO DE TRIBUNAIS DE CONTAS PODE COMPROMETER OBJETIVOS DA REFORMA DA PREVIDÊNCIA

A Coluna do Editor-Chefe do Jornal Correio Braziliense, Vicente Nunes, gerou polêmica nesta segunda-feira (30/5). Clique aqui e leia a reportagem! A matéria publicada no Jornal tem como fonte o seguinte artigo de autoria da Professora de Gestão Fiscal e Presidente da AUD-TCU, Lucieni Pereira. Confira abaixo o artigo elaborado de forma independente!

*Por Lucieni Pereira

O desafio da previdência no Brasil está longe de ser resolvido com a Reforma de Michel Temer. Além de não enfrentar boa parte dos fatores críticos da gestão dos regimes próprios dos servidores públicos civis e, sobretudo, dos militares, o setor sofre pressões de categorias administrativas e de nível intermediário, que não se conformam com a exigência do concurso público específico para ingresso em cada cargo a partir da Constituição de 1988.

Um dos problemas, que certamente se multiplicará por toda administração pública e agravará o deficit financeiro da previdência dos servidores públicos civis, parte dos próprios Tribunais de Contas, que, sob diversas formas de solução criativa, investem em propostas que ressuscitam a prática de ascensão de cargo de nível médio e transformações de cargos administrativos em outros cargos cujas atribuições são consideradas atividades exclusivas de Estado.

Realidade anterior à Constituição de 1988, esse ‘jeitinho’ patrimonialista brasileiro foi - ao menos no papel - totalmente banido da administração pública com a inauguração de um modelo de gestão pautado na impessoalidade, na moralidade e na meritocracia por meio de concurso público específico.

Foi por essa via que as instituições republicanas se aperfeiçoaram e chegaram ao quadro institucional de hoje, fortalecidas o suficiente para rejeitar duas contas presidenciais sucessivas e enfrentar interesses econômicos e políticos como assistimos com a Operação Lava Jato.

Embora as decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) sejam pacíficas no sentido de que o patrimonialismo deve ser execrado na administração pública, há Tribunais de Contas cujo modelo de gestão que está longe de refletir esse ideal constitucional.

Em 2014, o Procurador-Geral da República acolheu na íntegra a Representação da Associação Nacional dos Auditores de Controle Externo dos Tribunais de Contas do Brasil (ANTC) e ajuizou ação direta de inconstitucionalidade nº 5.128 contra lei sergipana que promoveu ‘trem da alegria’, ao transformar 81 cargos administrativos de nível médio em outro cargo de natureza finalística de controle externo de nível superior, com denominação semelhante a dos atuais Auditores de Controle Externo.

O relator da ação no STF, Ministro Marco Aurélio, reconheceu em despacho que a reestruturação do quadro de pessoal do Tribunal de Contas afeta de forma direta a respectiva estrutura organizacional e os direitos subjetivos dos gestores de órgãos e entidades da administração pública, o que pode levar à nulidade das decisões de controle externo se for verificado desvio de função.

A Associação Nacional também critica proposta de ‘trem da alegria’ que partiu do Tribunal de Contas do Estado da Bahia. Pelo Projeto de Lei enviado à Assembleia Legislativa, os atuais ‘Agentes de Controle Externo’ (nível médio) passam a se denominar ‘Auditores de Contas Públicas’ (nível superior). Não bastasse isso, a proposta prevê que o salário do novo cargo de nível superior ‘servirá de paradigma para a evolução aposentadorias’ dos servidores de nível médio que já se aposentaram.

Em nota, a ANTC afirmou que a proposta desmerece a função e banaliza o termo ‘Auditor’ para cargo de nível médio e que já estava em extinção. A entidade também denunciou o impacto negativo da proposta sobre o regime de previdência de todos os servidores públicos civis do Estado da Bahia, o que torna ineficaz qualquer esforço de reforma da previdência para os Estados.

No Tribunal de Contas dos Municípios de Goiás (TCM-GO), servidores administrativos também pressionam para outro tipo de ‘trem da alegria’. Cerca de 25 ‘Analistas Administrativos’ querem a adoção da mesma nomenclatura de ‘Auditor de Controle Externo’, sendo que aqueles agentes prestaram concurso específico para o exercício de atividades de natureza administrativa da própria gestão Tribunal.

A Paraíba embarcou no mesmo ‘trem’. Há pouco tempo, o Tribunal de Contas encaminhou à Assembleia Legislativa Projeto de Lei para ressuscitar o cargo de ‘Auxiliar de Auditoria de Contas Públicas’ (nível médio) posto em extinção desde 2002. Na prática, a proposta constituirá aproveitamento indevido dos 29 servidores ativos no novo cargo de ‘Técnico de Contas Públicas’, que passará a exigir nível superior apenas para justificar um salário incompatível com o cargo de Auxiliar.

O Tribunal de Contas do Espírito Santo é outro que resolveu abrir a discussão para alterar o requisito de investidura do cargo de ‘Assistente Técnico’, que passará de nível médio para nível superior. Atualmente, 13 servidores ocupam o cargo em atividade, sem contar os aposentados e pensionistas, que serão beneficiados futuramente quando houver equiparação salarial com os Auditores. A proposta é recebida como um golpe pelos Auditores de todo País, pois a atual Lei que rege a carreira dos Auditores do TCE-ES sempre foi considerada uma referência nacional pela classe. A proposta foi aprovada pelo Plenário do TCE-ES e deve ser encaminhada à Assembleia Legislativa.

Nem mesmo o Tribunal de Contas da União ficou livre dessas pressões. Tramita no órgão anteprojeto de lei apresentado, em 2015, durante a gestão do Ministro Aroldo Cedraz com a finalidade de acomodar pressões de um grupo que almeja ser considerado ‘Auditor’ sem prestar concurso específico para a complexa função.

Para relatar a matéria de natureza administrativa foi sorteado o Ministro Vital do Rêgo, que, atendendo ao pedido da Associação da Auditoria de Controle Externo do TCU (AUD-TCU), mandou ouvir novamente a Consultoria Jurídica do Tribunal.

A AUD-TCU, que representa apenas ‘Auditores de Controle Externo’, chama atenção para o elevado risco de efeito multiplicador que o ‘trem da alegria’ proposto ao TCU pode acarretar em todo serviço público federal, com impacto orçamentário, fiscal e também sobre o regime próprio de previdência dos servidores civis da União.

Pela proposta, 200 cargos de natureza administrativa de nível superior (Médicos, Nutricionistas, Bibliotecários, Analistas de Sistemas, Programadores, Enfermeiros, Psicólogos, e afins) seriam transformados no cargo de ‘Auditor de Controle Externo’ de natureza finalística, criando atribuições híbridas que não são compatíveis com o conceito jurídico e as garantias constitucionais asseguradas às atividades exclusivas de Estado.

Embora a proposta não tenha impacto orçamentário no TCU, pois a remuneração dos administrativos é igual a dos Auditores, a extensão do precedente nos demais órgãos federais pode gerar impactos incalculáveis, uma vez que há diferenças entre cargos distintos de nível superior que podem chegar a R$ 13,4 mil na remuneração mensal.

Além dessa manobra jurídica, rejeitada por reiteradas decisões do STF e fiscalizações do próprio TCU, a proposta altera o requisito de ingresso no cargo de ‘Técnico’, que passaria de nível médio para nível superior. Uma das associações dos Técnicos também pleiteou alteração do nome do cargo de seus filiados para ‘Auditor-Adjunto de Controle Externo’.

De acordo com a AUD-TCU, o objetivo não é outro senão pavimentar o caminho para, no segundo momento, buscar a equiparação salarial com os Auditores. Atualmente, o TCU dispõe de 1.617 cargos de ‘Auditor de Controle Externo’ (nível superior), 200 cargos administrativos de nível superior, 914 cargos de ‘Técnico’, dos quais a maior parte é de natureza administrativa (mais de 750), e 19 cargos de ‘Auxiliar’, de nível básico.

A entidade também alerta que a redução do nível de transparência da denominação dos cargos cria um quadro de confusão que praticamente impede a sociedade de controlar e acompanhar os gastos públicos com pessoal. Esse cenário de obscuridade e imprecisão é um expediente antigo, comumente é usado para deturpar e ocultar pretensões ilegítimas.

Em 1995, o TCU promoveu ascensão, transpondo o cargo de Programador, até então de nível médio, para o cargo ‘Programador’ de nível superior. Em 2013, o Ministério Público Federal (MPF) instaurou procedimento administrativo para apurar o caso (PA nº 1.16.000.001883/2013-82). Em resposta, o TCU, apesar de reconhecer que a prática não estava de acordo com as decisões do STF, alegou que o ato aconteceu há mais de 18 anos, tendo expirado o prazo decadencial para sua anulação.

Dessa forma, os mesmos ‘Programadores’, que no passado ingressaram em cargo de nível médio e foram ilegitimamente alçados a um cargo administrativo de nível superior, hoje buscam nova transformação para o cargo de ‘Auditor de Controle Externo’, sem prestar concurso público específico para realizar fiscalizações na esfera de controle externo.

Em abril de 2017, a Câmara Coordenação e Revisão da Procuradoria-Geral da República homologou o parecer do Procurador da República pelo arquivamento deste ponto, mantendo o questionamento quanto à legalidade do pagamento em duplicidade aos mesmos servidores da URV (11,98%) referente a perdas salariais decorrentes de ‘planos do Governo Federal’ tratada no mesma Notícia de Fato (Processo Administrativo no TCU nº 023.548/2013-4). Da decisão da Câmara de Coordenação e Revisão ainda cabe recurso.

Embora todos os pleitos de ascensão e transformação neguem existência de impactos orçamentário, fiscal e previdenciário, não é possível confiar no discurso diante desse caso do TCU e do pedido apresentado no Mandado de Segurança nº 30.692 impetrado por uma das associações dos Técnicos do TCU para equiparar o salário dos ‘Técnicos’ ao dos ‘Auditores’.

A diferença entre as remunerações de ‘Auditores’ e dos ‘Técnicos’ no TCU, em último nível da tabela, é de R$ 11.267,58. Com a alteração do requisito de ingresso no cargo e adoção de nomenclaturas praticamente iguais, abre-se espaço para os servidores de nível médio buscarem no Congresso Nacional a equiparação salarial tão sonhada sem a necessária submissão a um novo concurso público específico, o que já se tentou pela via judicial e o STF negou.

Se o TCU embarcar novamente no ‘trem da alegria’, o impacto orçamentário e fiscal anual para União pode chegar a R$ 137 milhões (posição de abril de 2017), sem considerar a repercussão da medida sobre as aposentadorias e pensões do órgão.

O Novo Regime Fiscal, que instituiu o teto de gastos na União por 20 anos, não comporta mais esse tipo de manobra, sob pena de o órgão ficar sem orçamento suficiente para pagar salário. As despesas do TCU fixadas na Lei Orçamentária de 2017 ultrapassam, em R$ 34 milhões, o limite global do exercício, o que exigirá do órgão um esforço para redimensionar os gastos até 2019.



O número consta do Relatório de Avaliação das Metas Fiscais referente ao 1º bimestre de 2017 publicado pelo Ministério do Planejamento e o Poder Executivo somente poderá compensar excedente desse tipo até 2019, conforme previsto na Emenda 95, de 2016.

Para piorar o quadro, o impacto da decisão não se restringiria ao TCU, produzindo efeito multiplicador nos demais órgãos federais que têm a Corte federal como espelho, assim como nos demais Tribunais de Contas.

Na intenção de barrar a investida, a AUD-TCU apresentou ao Ministro Vital do Rêgo uma petição em que critica a ausência de estudos quanto ao desempenho profissional dos atuais ‘Técnicos’ no exercício das atribuições de nível intermediário e sobre quais medidas seriam adotadas em relação àqueles que ainda hoje não dispõem do diploma de conclusão de curso de nível superior.

Todas essas manobras criativas desconsideram passagem importante inserida na Constituição pela Reforma Administrativa de 1998. Pela redação dada ao artigo 39, § 1º, são componentes do sistema remuneratório a natureza, o grau de complexidade e responsabilidade das atribuições, os requisitos de investidura e demais peculiaridades de cada cargo. “Requisito de investidura é um dos componentes para definição do padrão remuneratório, por isso as pressões pela volta do ‘trem da alegria’ no setor público sob as mais variadas formas”, ressalta Lucieni.

Para AUD-TCU, o que está em jogo é o intento de alguns ‘Técnicos’ que almejam dispor do mesmo padrão remuneratório dos ‘Auditores’ e ocupar funções gratificadas de chefia no órgão de fiscalização, sem prestar concurso público específico para exercer a liderança sobre os Auditores, o que é um contrasenso.

Na esteira, pretende-se tomar por empréstimo a denominação própria de outro cargo para se fazer passar por ‘Auditor’ sem sê-lo. No conjunto, as pretensões ilegítimas configuram o que o próprio Judiciário reconhece como ‘trem da alegria’. Eis o entendimento do Juízo na sentença transitada em julgado:

 

“De fato. Como é notório, a expressão utilizada, “trem da alegria”, significa a efetivação de um grupo de pessoas na administração pública sem que tenham sido aprovadas em concurso público, tanto servindo para qualificar aqueles que ingressam na administração pública quanto aqueles que, nada obstante possuírem algum cargo, são deslocados para outro cargo sem a submissão a concurso público.

A parte autora, portanto, abraçou a tese de possibilidade de que servidores aprovados para determinados cargos pudessem exercer a função de auditor, enquadrando-se no segundo caso acima descrito, o qual, como dito, é comumente conhecimento como "trem da alegria”.” (grifei)

A ANTC também reafirma o compromisso da entidade nacional de lutar contra todas as manobras jurídicas, não apenas para defender as prerrogativas profissionais dos Auditores de Controle Externo do Brasil, mas também para evitar sucessivas reformas da previdência que tornam cada vez menos atraentes os cargos públicos cujas atribuições constituem atividades exclusivas de Estado.

Para entidade, se os Tribunais de Contas acomodarem os pleitos ilegítimos de ‘Técnicos’ e ‘Auxiliares’ sob as mais diversas formas de ‘trem da alegria’, os serviços públicos serão cada vez mais comprometidos, em prejuízo aos interesses dos cidadãos.

RISCOS DE EFEITO MULTIPLICADOR NO SERVIÇO PÚBLICO FEDERAL

Na Secretaria de Orçamento Federal, a diferença entre as remunerações dos ‘Analistas de Planejamento e Orçamento-APO’ (nível superior) e dos ‘Técnicos de Planejamento e Orçamento’ (nível médio) chega a R$ 13.103,61 este ano, tendo como base os dados da Lei nº 13.327, de 2016. Transportado o precedente que pode vir a se consolidar no TCU para outros órgãos federais, o impacto anual da ascensão de 279 Técnicos da SOF poderia atingir até R$ 48,7 milhões, dentre ativos, aposentados e pensionistas.

Se forem consideradas as diferenças salariais entre o cargo de APO e os 1.200 cargos de ‘Analista de Infraestrutura’, 184 de ‘Analista de Infraestrutura Sênior’ e 497 de ‘Analista em Tecnologia da Informação’, todos cargos de nível superior do quadro de pessoal do Ministério do Planejamento, os impactos orçamentário, fiscal e previdenciário poderiam ultrapassar a casa dos R$ 240 milhões, com base no salário de julho de 2016.

O risco no Banco Central do Brasil é ainda maior, porque foi inserida na Medida Provisória nº 765, de 2016, emenda que altera o requisito de ingresso no cargo de Técnico do Banco Central. Esse é o primeiro passo para depois se pleitear equiparação remuneratória. Segundo estatística do Bacen atualizada em 2013, o órgão dispõe de 5.309 cargos de ‘Analista’ (nível superior) e 861 cargos de ‘Técnico’ (nível médio), cuja diferença de remuneração em relação ao primeiro é de R$ 13.103,60.

Assim, caso a proposta que está pronta para votação no Plenário do Congresso Nacional não excluir do texto a pavimentação para ascensão, em breve a sociedade terá de arcar com o pleito de equiparação salarial. Hoje, o impacto da medida acarretaria um incremento nos gastos públicos de até R$ 150,4 milhões, além do impacto sobre as aposentadorias e pensões dos Técnicos, número não encontrado.

Na Secretaria de Receita Federal do Brasil as pressões não são diferentes. Com efetivo de 30.306 ‘Auditores-Fiscais’ e 13.616 ‘Analistas Tributários’, dentre ativos, inativos e pensionistas, a diferença salarial entre os dois cargos de nível superior é de R$ 9.094,27. Em 2015, o então Deputado Amauri Teixeira apresentou uma emenda na Medida Provisória nº 660, de 2014, para transferir para os Analistas as atribuições privativas dos Auditores-Fiscais.

Na prática, buscou-se pavimentar o terreno para transformar mais de 13 mil cargos de Analista em cargo de Auditor-Fiscal. Os impactos orçamentário, fiscal e previdenciário, com base no salário de hoje, poderia ultrapassar R$ 1,650 bilhão ao ano, levando-se em conta os dados do Boletim Estatístico de Pessoal do Ministério do Planejamento (posição de julho de 2016).

A permanecerem as práticas de gestão pública que marcaram o período pré-democrático, será em vão todo esforço para equilibrar o resultado do regime próprio de previdência dos servidores públicos civis da União, que, em 2016, apresentou um deficit financeiro de R$ 33,3 bilhões (aposentadorias e pensões). Neste cenário, os atuais servidores e membros de Poder sujeitos à regra de transição podem se preparar para futuras e sucessivas reformas que adiarão, cada vez mais, o direito à aposentadoria com paridade e integralidade, sem perder de vista o efeito disso sobre a precarização das carreiras que congregam atividades exclusivas de Estado.


*Lucieni Pereira é Auditora de Controle Externo do Tribunal de Contas da União, Professora da Gestão Fiscal, Presidente da Associação da Auditoria de Controle Externo do Tribunal de Contas da União | AUD-TCU e Diretora de Defesa de Controle Externo da Associação Nacional dos Auditores de Controle Externo dos Tribunais de Contas do Brasil (ANTC).


Fonte: AUD-TCU

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