Nos últimos dias, o Sistema Tribunais de Contas, mais uma vez, foi alvo de duras críticas, motivadas, sobretudo, pela deflagração da operação quinto do ouro, que, a partir de elementos de informações e de provas nela colhidos, revelou, conforme veiculado pela imprensa, a suposta participação de integrantes da função judicante do Tribunal de Contas do Rio de Janeiro na prática de atos que têm sido objeto de apuração de desvio de recursos públicos.
Sem adentrar no mérito da imputação de responsabilidade, até porque isso se dará após a instauração do contraditório e da ampla defesa, é preciso, de logo, esclarecer que os tribunais de contas do Brasil não se limitam aos seus ministros e conselheiros, titulares e substitutos, assim como não se afigura prudente sobrevalorizar fatos dessa natureza como se fossem a regra, como se todos os integrantes da função judicante desviassem dos parâmetros éticos de conduta, ou como se a grave crise de defecção ética que assola instituições públicas afetasse exclusivamente os tribunais de contas.
Há, no âmbito do sistema de controle externo, três funções bem definidas e que devem ser hierarquicamente independentes entre si, até como condição de regularidade da instrução processual.
Há a função de auditoria de controle externo no órgão de instrução, cuja titularidade das atividades indissociáveis de planejamento, coordenação e execução de auditorias, inspeções, instrução processual e demais procedimentos de fiscalização deve ser exercida pelos auditores de controle externo concursados especificamente para o desempenho dessas atribuições de natureza finalística, de complexidade e responsabilidade de nível superior, podendo ser auxiliados por servidores ocupantes de cargos de nível intermediário, para cujo ingresso pela via do concurso público tenha sido exigido como requisito de investidura o nível médio de escolaridade; Função de Ministério Público, exercida pelos procuradores do Ministério Público junto aos tribunais de contas, e não dentro deles, registre-se; e Função judicante, exercida pelos ministros e conselheiros, titulares e substitutos.
O regular desempenho dessas funções é o que legitima a importância dos tribunais de contas para o controle dos gastos públicos e, consequentemente, para o combate à prática de atos de corrupção. A propósito, poucas instituições republicanas têm a sua razão de existir tão diretamente ligada à prevenção e ao combate à corrupção, cuja atuação contribui com a regularidade de atuação de todos os Poderes da Federação, servindo, principalmente, à sociedade, destinatária final do trabalho desempenhado pelas cortes de contas.
Nesse sentido, eventuais disfuncionalidades não podem colocar em xeque a razão de existir de uma instituição de envergadura constitucional, cuja essencialidade à manutenção do Estado Nacional e Democrático de Direito salta aos olhos. Pensar diferente disso é comungar do entendimento de que todas as instituições cujos integrantes sejam ou tenham sido objetos de investigação criminal devem ser extintas, solução indubitavelmente simplista, equivocada, desprovida de lógica e racionalidade.
Torna-se forçoso reconhecer, contudo, que quando há, no âmbito dos tribunais de contas, desvio de finalidade, há, inevitavelmente, um dano ao erário cuja natureza nos remete a um duplo efeito. Isso porque o controlador, que tinha o dever de controlar, não controlou, ao passo que a unidade jurisdicionada foi lesada em razão dessa deliberada omissão da entidade de controle, que tinha, frise-se, por razão de existência constitucional, o indisponível dever de agir para evitar a ocorrência do dano.
Ademais, não se pode olvidar que operações dessa natureza colocam os integrantes das três funções em situação iniludivelmente constrangedora, causando-lhes um inarredável desconforto, provocando, ainda, o dever de ofertar respostas claras e convincentes aos questionamentos formulados, mormente àqueles desproporcionais e desarrazoados que colocam em dúvida a necessidade de existência das cortes de contas, que são, como se sabe, instituições guardiãs dos bens e valores públicos.
A trágica situação que afetou o Tribunal de Contas do Rio de Janeiro descortinou a falta de efetividade das corregedorias, o que é motivo de preocupação, eis que para que os tribunais de contas possam ser vistos como órgãos paradigmas — é assim que devem ser, é por isso que a sociedade espera —, necessária se faz a punição devida de quem quer que venha a fazer das cortes de contas instrumento de exploração de benefícios de interesses pessoais.
Seria, então, a criação do Conselho Nacional dos Tribunais de Contas do Brasil o antídoto?
Há uma discussão isenta e séria sobre isso. Há quem tema que possa ser uma "grande corregedoria" com os mesmos vícios e ausência de efetividade das existentes atualmente em alguns tribunais, que pode, a depender da composição, é claro, ser mais uma instância com força capaz de legitimar a prática de atos antirrepublicanos. Há, ainda, e nesse grupo nos inserimos, aqueles que entendem que a proposta inicialmente gestada merece ser acolhida, discutida, reformulada e aperfeiçoada, tudo, é claro, a partir do aceite do contraponto qualificado, para, ao final, resultar numa proposta de consenso capaz de cumprir com o propósito de corrigir as mazelas que constituem óbice intransponível à regular atuação de uma Instituição cujo rol de competências é voltado à proteção da coisa pública e não à dilapidação ou ao uso desvirtuado dela.
Outra questão que veio exaustivamente à tona, mais uma vez, foi a forma de composição e ingresso dos integrantes da função judicante.
Sobre esse ponto, torna-se oportuno esclarecer que a forma de composição e ingresso, não obstante constituir um dos graves problemas, não é o único.
Na medida em que a estrutura e o funcionamento dos tribunais de contas passarem a ser conhecidos, pelo menos da forma como ocorre com outras instituições republicanas, revelar-se-á que a subordinação direta das unidades do Órgão de Auditoria aos integrantes da função judicante tem neutralizado e descredibilizado a atuação de alguns tribunais que ainda insistem em seguir esse modelo.
É que modelos dessa natureza, embora formalmente afastem a subordinação das unidades técnicas de auditoria aos conselheiros, na prática os tornam subordinadas e inteiramente deles dependentes,podendo servir para conferir aparência de legitimidade de instruções processuais, auditorias e inspeções nos órgãos e entidades jurisdicionados, colocando em risco de nulidade judicial as instruções, eis que realizadas sem a observância do princípio da independência técnico-funcional, que constitui direito subjetivo do gestor e garante a proteção jurídica dos integrantes do corpo técnico.
Essa imperiosa necessidade de distanciamento e de ausência de interferência entre as funções deve-se à estrutura constitucional de funcionamento dos tribunais de contas, que concentra, numa só instituição de controle externo, as funções de investigação, apuração, julgamento e revisão do julgado, diferente do sistema que rege o funcionamento do processo judicial, a exemplo do processo penal, que muito se assemelha ao processo de controle externo, embora com ele não se confunda.
Assim, embora pouco se fale sobre isso, o problema, hoje, não reside tão somente nos critérios de escolha, mas na ausência de observância deles. A bem da verdade, os requisitos exigidos como condição de ingresso na carreira de ministro ou conselheiro são mais rigorosos do que aqueles exigidos como condição de provimento do cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal. Registre-se, contudo, que não temos o propósito de afirmar que a forma de composição e ingresso não precise ser reformulada, não é isso. A composição precisa ser revista, mas apenas isso não basta.
Necessário se faz aclarar que, atualmente, o problema também descansa na ausência de observância dos critérios, na benevolente e flexível interpretação que se tem dado aos requisitos, no sentido desvirtuado que se tem empregado às palavras, na intencional, por vezes, confusão que se faz entre reputação ilibada e presunção de inocência, na vagueza interpretativa que tem sido dada ao requisito da idoneidade moral. Espera-se de um julgador de contas mais do que reputação ilibada, espera-se dele reputação inquestionável.
A necessidade de observância do preenchimento desses requisitos deve-se, sobretudo, à possibilidade de reflexos da atuação dos tribunais de contas nos direitos subjetivos dos gestores, que podem, em razão da atuação das cortes, tornarem-se réus em ações penais e de improbidade administrativa, terem comprometidos os seus direitos políticos, serem inabilitados para o exercício de funções públicas, além de tantas outras medidas gravosas e lesivas ao patrimônio, à honra e à imagem daqueles que se dispõem a gerir a coisa pública, mas que não ocupam cargos para avolumar bens, que têm internalizada a ideia tão bem difundida pelo filósofo gaúcho, Rui Cirne Lima, de que “administrar não é atividade de quem é senhor de coisa própria, mas gestor de coisa alheia”.
Pois bem. Como garantir que o resultado do trabalho de uma instituição de reconhecida envergadura constitucional seja dotado de induvidosa isenção e imparcialidade?
Diversas têm sido as medidas aventadas como soluções para o problema posto, mas toda a discussão centra-se em torno do tema voltado à necessidade de efetividade institucional, cuja relevância coincide com a própria razão de existência e manutenção dos tribunais de contas.
Não há como pensar em efetividade institucional sem viabilização dos meios que possibilitem a autonomia plena do Ministério Público de Contas, dotando-o dos instrumentos necessários ao bom desempenho das suas indispensáveis e valorosas funções, bem mais além da autonomia administrativa, orçamentária e financeira.
Não há como pensar em efetividade institucional dos tribunais de contas sem valorar a necessidade de definição de um padrão mínimo de organização e funcionamento do Órgão de Instrução dos 34 tribunais de contas, assegurando a independência profissional do auditor de controle externo para o exercício das funções finalísticas de controle externo. Aqui, diferentemente do Ministério Público de Contas, não há que se falar em autonomia do Órgão de Instrução, não se trata de buscar a separação do Órgão de Instrução da estrutura da instituição tribunal de contas, que detém o poder de autogoverno para exercer a iniciativa privativa de encaminhar ao Poder Legislativo propostas orçamentárias, de criação de cargos e reajustes de salário, dentre outras.
Não há como pensar em efetividade institucional dos tribunais de contas do Brasil sem assegurar que em todas as 34 instituições a escolha do dirigente máximo do Órgão de Instrução deva ser feita pelo presidente da casa. A previsão visa assegurar a unidade entre as diversas unidades técnicas que compõem o Órgão de Instrução, além de integrar tal Órgão à Presidência. A medida é essencial para que haja uma gestão de colaboração, com a garantia dos recursos necessários para que o Órgão de Instrução cumpra sua missão.
Para além desse aspecto crucial no plano interno, a medida cria condições institucionais para assegurar a uniformização do Órgão de Instrução em toda Federação, o que ainda é um desafio no funcionamento de alguns tribunais de contas cuja indicação dos dirigentes das unidades técnicas se dá pelos relatores das respectivas listas de jurisdicionados, desarticulando as unidades entre si e criando um ambiente propício para práticas que, não raras vezes, configuram inaceitável conflito de interesses que permeia o processo de controle externo, desde a sua origem.
Propostas desse jaez pautam-se no princípio do progresso e da vedação ao retrocesso, garantindo que nos 34 tribunais de contas o dirigente máximo possa ser um auditor de controle externo concursado, escolhido pelo presidente da corte dentre os integrantes da respectiva classe, a partir de critérios objetivos mínimos sobre as habilidades técnicas que serão definidas numa lei orgânica nacional, por exemplo.
Enfim, apesar da tempestade que atinge os tribunais de contas do Brasil, a impressão que se tem é que o tão sonhado tempo das consequências encontra-se bem mais perto do que longe. Ao contrário de Lima Barreto, não diria que ele chegou.
Portanto, para ser atingido o fim almejado pelo legislador constituinte originário, é imprescindível que os tribunais de contas sejam reconhecidos como paradigmas, como instituições cuja razão de existir encontra-se diretamente ligada à proteção da coisa pública. Para tanto, faz-se necessária a rigorosa punição de quem eventualmente venha a fazer das cortes de contas instrumentos de exploração de benefícios de interesses pessoais, daqueles que desfilam pela passarela do Título XI do Código Penal, da Lei de Improbidade Administrativa, independente de qual das três funções integre.
Por fim, não há dúvida de que, agindo regularmente, os tribunais de contas permanecerão sendo indispensáveis à manutenção do Estado Nacional e Democrático de Direito, de modo que sem a presença dos quais estaria a sociedade suscetível ao enfrentamento de crises de instabilidade nos pilares nos quais se escora a estabilidade social. É, portanto, irrefutavelmente ilógica a defesa de medidas que caminhem no sentido da fragilização dessa instituição de notável envergadura constitucional, o que se deve, por óbvio, é defender o aperfeiçoamento do sistema vigente.
Fonte: Boletim de notícias Conjur