Iniciativa afronta a independência do Congresso Nacional e a Constituição, que não permite medida provisória para disciplinar matérias que tenham relação com direito penal, processual penal e processual civil
BRASÍLIA. O Palácio do Planalto prepara mais uma manobra contra o Congresso Nacional. O Jornal Correio Braziliense desta sexta-feira (18) divulgou matéria informando que a Presidente Dilma Roussef assinará, hoje, uma Medida Provisória sobre a legislação que disciplina o acordo de leniência, já que o Congresso Nacional não votou o texto do Projeto de Lei º 3.636, de 2015, em tramitação na Câmara dos Deputados para alterar a Lei Anticorrupção (Lei nº 12.846, de 2013). A Reuters também divulgou a intenção do Governo em reportagem publicada ontem.
Ainda de acordo com a notícia do Correio, a Presidente da República pretende incluir o Tribunal de Contas da União como parte das negociações. Além de afrontar o Congresso Nacional, a idéia, se for levada adiante, será inconstitucional e certamente será questionada no Supremo Tribunal Federal por uma ação direta de inconstitucionalidade.
O acordo de leniência previsto no Projeto de Lei nº 3.636, de 2015, toca em matérias que têm reflexo em questões de natureza processual civil, penal e processual penal, o que não pode ser objeto de medida provisória.
Pela proposta em tramitação na Câmara dos Deputados, um acordo celebrado com a participação do órgão de controle interno e do órgão jurídico afastará a legitimidade do ente da Federação de ajuizar e, pior, impedirá o trâmite da ação de improbidade administrativa, assim como livra as empresas da aplicação de sanções da própria Lei Anticorrupção.
O Projeto de Lei nº 3.636, de 2015, também pretende estender para a esfera penal os efeitos do acordo de leniência celebrado na esfera cível com a participação do Ministério Público. Nesse ponto, a proposta abrange questões de direito penal e processual penal.
Por apresentar essas repercussões, essa matéria não pode, de forma alguma, ser objeto de medida provisória por vedação expressa do artigo 62, § 1º, inciso I, alínea ‘b’ da Constituição de 1988, que impede sua edição sobre direito penal, processual penal e processual civil.
É igualmente descabida a idéia de incluir os Tribunais de Contas nos acordos de leniência que serão celebrados pelos órgãos de controle internos de todos os Poderes da União, dos 26 Estados, do Distrito Federal e demais de 5,5 Municípios, pois desfiguraria o papel fundamental daquelas instituições de controle externo conferido pela Constituição de 1988.
Uma das principais funções que o artigo 71 da Constituição Federal confere ao Tribunal de Contas é julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros e as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público.
Ou seja, é o TCU o guardião do erário público, devendo canalizar seus esforços para proteger o dinheiro do povo e não ocupar a maior parte dos Auditores de Controle Externo com programa de ‘salvamento de empresas corruptas’ que tramaram contra o Estado brasileiro. Esse, sem dúvida alguma, não foi o objetivo da aprovação da Lei Anticorrupção pelo Congresso Nacional.
Se assim ocorrer, dada a multiplicidade dos órgãos de controle interno, os Tribunais de Contas não farão outra coisa senão avaliar a legalidade e a legitimidade de acordos de leniência celebrados por mais de 11 mil controles internos que existem no País, já que estes órgãos têm a missão institucional de apoiar o controle externo no exercício de sua missão, conforme previsto no artigo 74, inciso IV da Constituição Federal.
Importante destacar que cerca de R$ 200 bilhões do orçamento da União são aplicados de forma descentralizada pelos Estados e mais de 5,5 mil Municípios, o que praticamente inviabiliza a participação do TCU e demais Tribunais de Contas na negociação de acordos celebrados por mais de 11 mil órgãos de controle interno existentes no País.
Para apurar o dano causado ao patrimônio público, o Tribunal de Contas se vale de procedimentos específicos para defender, de fato, o erário público, o que faz mediante julgamento de contas precedido por auditorias, inspeções e demais procedimentos de fiscalização que exigem tempo e uma equipe altamente especializada de Auditores de Controle Externo, que vão a campo auditar as obras superfaturadas, por exemplo, tarefa que não pode ser realizada a toque de caixa.
"Transformar o TCU em um verdadeiro ‘cartório’ para legitimar ‘programa de salvamento de empresa corrupta’ é desvirtuar a função constitucional dessa instituição republicana, além de violar Convenções internacionais das quais o Brasil é signatário", diz Lucieni Pereira, Presidente da ANTC.
A intenção de disciplinar a matéria por medida provisória também toca em uma das principais funções institucionais do Ministério Público prevista no artigo 129, inciso III da Constituição de 1988, que é a de “promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social”, cujo processo não pode ser disciplinado pela via provisória.
A Lei Anticorrupção foi editada em decorrência da necessidade de atender aos compromissos internacionais de combate à corrupção assumidos pelo Brasil ao ratificar a Convenção das Nações Unidas contra Corrupção (ONU), a Convenção Interamericana de Combate à Corrupção (OEA) e a Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Ao ratificar as três Convenções, o Brasil obrigou-se a punir de forma efetiva as pessoas jurídicas que praticam atos de corrupção. Para justificar a modelagem inovadora, de responsabilização objetiva da pessoa jurídica na esfera cível, o Poder Executivo alegou na Exposição de Motivos ter escolhido tal via porque o Direito Penal não oferece mecanismos efetivos ou céleres para punir as sociedades empresárias, muitas vezes as reais interessadas ou beneficiadas pelos atos de corrupção.
Assim, a edição da medida provisória anunciada pela imprensa não apenas significará um verdadeiro afronta da Presidente da República ao Congresso Nacional, como grave violação aos fundamentos de Convenções internacionais ratificadas pelo Brasil.
Fonte: Comunicação ANTC.