RESSACA DA CAMPANHA ELEITORAL

Finalizado o processo eleitoral, o Brasil acordou de 'ressaca política' nesta segunda-feira, cujos sintomas poderiam ter sido minimizados. A despeito do aspecto positivo do exercício político pelos cidadãos, as manifestações intolerantes e exaltadas publicadas nas redes sociais causam apreensão e preocupação. Por mais que seja compreensível a necessidade de catarse por parte da metade frustrada com o resultado das urnas, nada justifica as manifestações racistas, xenofóbicas e até mesmo separatistas.

O cristal trincado pós-eleição não foi surpresa. Em 17 de outubro, a Associação Nacional dos Auditores de Controle Externo dos Tribunais de Contas do Brasil (ANTC) encaminhou carta aos presidenciáveis por meio da qual fez alerta no sentido de que o nível dos debates acirrava conflitos que não contribuem para a democracia.

O documento chegou a destacar que a estratégia de polarização exacerbada adotada refletia a alta tensão verificada nas redes sociais, ressaltando que tal estratégia poderia contaminar os eleitores de maneira perigosa até o final das eleições.

Quase como profecia, anunciada a vitória da candidata Dilma Rousseff, iniciaram-se as ofensas aos cidadãos-eleitores de determinadas Regiões destinatárias do Programa Bolsa-Família, apontado - na visão superficial dos "críticos" - como um dos principais fatores para o resultado da eleição presidencial.

Enquanto nas redes sociais surgem movimentos de revolta à reeleição da Presidente com pouca diferença de voto, indignados com a corrupção e com o que chamam de desgovernança do Brasil pregam propostas de construção de um muro para separar as Regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul das Regiões Norte e Nordeste (movimento intitulado "Muro Já"), de separação do Sul e do Estado de São Paulo.

Todo cidadão tem pleno direito de expressar sua indignação, e não faltam razões para tê-la e expressá-la. Porém, é salutar alguns cuidados para evitar excessos que podem acarretar consequências indesejáveis, seja no plano jurídico, seja no campo das relações interpessoais.

Primeiro, é importante destacar que a forma federativa definida constitucionalmente tem como alicerce a união indissolúvel dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, o que sequer pode ser objeto de emenda constitucional tendente a aboli-la (artigo 60, § 4º). Tal previsão põe por terra qualquer ideia separatista no plano geográfico.

Segundo, a República Federativa tem como fundamento o pluralismo político e objetivo fundamental a promoção do "bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação".

Base do Estado Democrático de Direito, o pluralismo político aponta o reconhecimento de que a sociedade é formada por vários grupos, composta, portanto, pela multiplicidade de vários centros de poder em diferentes setores. É também por meio dessa ideia que se busca assegurar a liberdade de expressão, de manifestação e de opinião, garantindo-se a participação do povo na formação da democracia do País.

Já no que diz respeito ao objetivo fundamental mencionado, a Lei nº 7.716, de 1989, proíbe e tipifica como crime atos de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

Nesse sentido, são preocupantes as manifestações de preconceito em relação às escolhas dos cidadãos-eleitores das Regiões Norte e Nordeste, contempladas com a maior parte dos recursos destinados ao Programa Bolsa-Família.

É indiscutível que esse acirramento, em boa medida, decorre do tom que foi dado à campanha eleitoral, o que requer reflexão honesta dos candidatos e dos políticos em geral. Espelha, ainda, visão preconcebida e superficial dos eleitores que têm a pretensão de que suas escolhas no processo eleitoral foram mais bem qualificadas em relação aos que votaram no candidato adversário eleitoral.

O que talvez esses eleitores não saibam é que a União deve alocar no Programa Bolsa-Família, que se tenta atribuir única causa do resultado das eleições, algo em torno de R$ 25 bilhões em 2014. Isso não é desprezível frente ao orçamento de vários Estados, mas é bem menos do que outros benefícios pouco ou nada transparentes praticados pela União que a maioria sequer tem noção do quanto é afetada no bolso.

Embora os desafios da economia brasileira não se restrinjam a programas de subsídio dos bancos estatais, que servem a designos políticos, é oportuno citar alguns casos para esclarecer melhor o impacto dessas ações generosas nas contas públicas e no bolso dos contribuintes.

Em agosto de 2014, a dívida do BNDES com o Tesouro Nacional, por exemplo, atingiu R$ 451,1 bilhões, o equivalente a 8,9% do PIB. O Ministério da Fazenda já renegociou R$ 238,2 bilhões dessa dívida em condições mais favoráveis. Tal repactuação aumentou o custo do Tesouro com o subsídio dado pela União para custear as taxas mais baratas que o BNDES oferece às empresas ('bolsa-empresa'). Somente este ano, o custo do subsídio dos empréstimos será de R$ 23 bilhões para o Tesouro Nacional. No período de 2012 e 2015, esse custo atingirá R$ 79,7 bilhões.

Apesar de todo esse benefício já concedido, o Tesouro Nacional vai renegociar R$ 130 bilhões dos empréstimos concedidos ao BNDES. Com a nova rodada, o Banco ganhará mais tempo para começar a pagar sua dívida.

Também não adianta culpar as empresas beneficiárias ou segregar as Regiões do País onde tais empresas estão instaladas. Se o Governo oferece crédito subsidiado, qualquer empresa se beneficiará. É assim em qualquer lugar do mundo.

Ninguém desconsidera a real influência eleitoral de programas sociais direcionados à população menos favorecida economicamente, em especial por meio do "Bolsa-Família". Porém, não se pode esquecer que empresas beneficiárias por subsídios tão generosos do Governo Federal também podem financiar campanha eleitoral e, de forma muito mais alargada, influenciar o resultado do pleito não apenas em uma determinada Região, mas em todo País.

Diante disso, resta perguntar: por que não vemos intolerância aos Programas do BNDES que beneficiam empresários? São duas e distintas as razões. Primeiro, não é fácil compreender a engenharia financeira desses benefícios fiscais nada transparentes. Segundo, os destinatários das generosas benesses são integrantes da elite detentora do poder econômico, mais difícil de enfrentar.

Não resta a menor dúvida de que merecem atenção e avaliação permanentes os indicadores do Programa Bolsa-Família, doa a quem doer, ainda que se tenha de enfrentar 'faniquito' de autoridades e estamos prontos para enfrentá-lo.

Igualmente deve ser avaliado e criticado o desempenho dos Programas financiados pelo BNDES, os quais são acobertados pelo manto sacrossanto do sigilo bancário sobre o dinheiro público, o que tem obstaculizado a fiscalização do Tribunal de Contas da União sobre a eficiência e a eficácia de tais programas, revelando-se a maior 'caixa-preta' do orçamento da União.

É preciso avaliar o desempenho dos programas sociais e econômicos e fazer amplos debates com a sociedade, que custeia essas ações que devem ser de Estado e não de partidos políticos, pois são custeadas com recursos dos impostos e contribuições.

O que não é razoável é direcionar toda fúria decorrente da frustração da derrota nas urnas aos beneficiários de um dos programas sociais, apenas um, sem sequer considerar o impacto fiscal do uso político dos bancos públicos, para exemplificar outro tipo de ação governamental que afeta em valores muito mais substanciais o bolso de toda a sociedade.

A realidade, marcada por impiedosa desigualdade regional, impõe serenidade, reflexão, generosidade e compaixão com os cidadãos beneficiários do Bolsa-Família.

*Lucieni Pereira é Auditora Federal de Controle Externo do Tribunal de Contas da União, Professora de Gestão Fiscal e Presidente da Associação Nacional dos Auditores de Controle Externo do Brasil (ANTC).

Fontes:

Estadão:
Uma sede quase insaciável;
Os sete mitos das eleições 2014.

Palestra Leandro Roque:
"O que houve com a economia brasileira?"
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