As Associações representativas das categorias de Membros dos Tribunais de Contas (Atricon, Abracom e Audicon), dos Membros do Ministério Público de Contas (Ampcon), dos Auditores de Controle Externo (ANTC) e de Servidores dos Tribunais de Contas do Brasil (Fenastc) representadas por seus respectivos Presidentes, abaixo assinados, MANIFESTAM publicamente.
1. A Lei da Ficha Limpa corre sério risco de perder efetividade. Está em pauta no STF, com votação já iniciada, o Recurso Extraordinário (RE) nº848826, em que se discute a competência dos Tribunais de Contas para julgar as contas de gestão dos Prefeitos que atuam como ordenadores de despesas.
2. O entendimento de todos os Tribunais de Contas do Brasil, do Tribunal Superior Eleitoral e do Ministério Público Federal, especialmente após o advento da Lei da Ficha Limpa, é de que os Prefeitos se submetem a duplo julgamento. Suas contas de governo – que têm um conteúdo limitado a aspectos contábeis, orçamentários, financeiros e fiscais – são julgadas pela Câmara de Vereadores, cabendo ao Tribunal de Contas, neste caso, a emissão de um Parecer Prévio, que somente pode ser rejeitado pelo Legislativo por decisão de 2/3 dos Vereadores. Na hipótese, porém, em que o Prefeito decide assumir a atribuição de ordenador de despesas, os seus atos relativos ao processamento da despesa, integrarão, como as de quaisquer outros administradores de recursos públicos, as chamadas contas de gestão, cabendo o seu julgamento exclusivamente aos Tribunais de Contas, sem participação do Legislativo, conforme estabelece o artigo 71, II c/c artigo 75 da Constituição Federal.
3. A interpretação sistemática do artigo 31, 71, I e II, da Carta da República, amparada no princípio da máxima efetividade da Constituição Federal, deixa inconteste essa competência dos Tribunais de Contas. Tanto assim que por meio do julgamento conjunto, em 2012, das ADI 4578, ADC 29 e ADC 30, o STF declarou constitucional a Lei Complementar 135 (Lei da Ficha Limpa), inclusive a atual redação da alínea “g”, do artigo 1º, inciso I, da Lei Complementar 64, que torna inelegíveis os que tiverem contas julgadas irregulares (por falhas insanáveis caracterizadores de improbidade dolosa) pelos Tribunais de Contas, inserindo-se nesta alínea expressamente os detentores de mandato eletivo que atuarem como ordenadores de despesas. Destaque-se que na discussão sobre a constitucionalidade da referida “alínea g”, restaram vencidos uma minoria de Ministros que excluía os Prefeitos da incidência da norma por entenderem que estes, em qualquer situação, deveriam ter contas julgadas pelas Câmaras de Vereadores.
4. Neste momento, por meio do referido RE 848826, o Plenário do STF volta a examinar a questão, tendo o Relator do Recurso, Ministro Luís Roberto Barroso, votado pela manifesta competência dos Tribunais de Contas para julgar as contas de gestão dos prefeitos que, por vontade própria, decidiram ser ordenadores dos gastos, mantendo a decisão do TSE e seguindo parecer da Procuradoria Geral da República.
5. Não se pode desconhecer a realidade dos pequenos municípios brasileiros, nos quais os prefeitos efetivamente são os ordenadores de despesas, realizando licitações, assinando contratos, empenhos, ordens de pagamento e cheques. A estrutura da Presidência da República, dos governos estaduais, das prefeituras de Capitais e demais grandes cidades, nas quais secretários municipais são os ordenadores de despesas, não se repete na maioria dos municípios, especialmente nas regiões mais pobres do País.
6. Prevalecendo o entendimento de que os Tribunais de Contas poderiam apenas emitir Parecer Prévio sobre os atos de gestão e ordenações de despesas na maioria dos Municípios, tem-se, sem sombra de dúvidas, o enfraquecimento da efetividade do controle externo e de proteção do patrimônio público, uma vez que às Casas Legislativas não foram conferidos os meios constitucionais para assegurar o ressarcimento aos cofres públicos nos casos de desvio de recursos e corrupção.
7. Tal interpretação – se vier a prevalecer – tornaria a Lei da Ficha Limpa praticamente sem efeito, na medida em que, comprovadamente, a rejeição de contas pelos Tribunais vem sendo a principal causa de impugnação de candidaturas por parte do Ministério Público Eleitoral. Além disso, retira a possibilidade de o Tribunal de Contas atuar tempestivamente para corrigir desvios e assegurar o imediato ressarcimento do dano ao erário, já que as prestações de contas anuais não são julgadas pelo Poder Legislativo em prazo inferior a seis meses contado do encerramento do exercício em que o desvio ocorrer.
8. Por outro lado, seguindo a tese contrária à do Relator, os Tribunais de Contas não poderão aplicar sanções nem imputar débitos, quando o prejuízo ao patrimônio público decorresse de ordenação de despesas feitas pelo Chefe do Poder Executivo, apesar de a Constituição da República, expressamente, conferir aos Tribunais de Contas – e não às Casas Legislativas – a competência para proferirem decisões com eficácia de título executivo contra quaisquer responsáveis por desvio de bens e dinheiros públicos.
9. Outra consequência indesejável que pode advir de um retrocesso jurisprudencial do STF é o de estimular que todos os prefeitos e até Governadores e o Presidente da República possam, eventualmente, assumir a ordenação de despesas, o que tornará letra morta as principais competências conferidas aos Tribunais de Contas pela Constituição Federal, notadamente o artigo 71, II, VIII, §3º: julgar contas de gestão, determinar ressarcimentos por prejuízos causados ao erário e aplicar sanções a gestores que cometeram graves irregularidades.
10. Caso seja retirada essa competência constitucional dos Tribunais de Contas, mitiga-se, por conseguinte, a igualdade entre as pessoas federativas da República. De fato, quando o prefeito é ordenador de despesas de verba oriunda do Governo Federal, por meio de convênios ou acordos com órgãos federais, não se questiona a competência do TCU para julgar diretamente as contas dos prefeitos em relação aos convênios, inclusive impondo débito e aplicando multas. Esta diferenciação entre verba federal, de um lado, e verbas estaduais e municipais, de outro, não encontra lógica e consistência no texto constitucional. Do contrário, equivaleria a dizer que, em uma mesma obra, com contrapartida de recursos municipais, a verba federal teria um controle técnico, enquanto a verba municipal se submeteria apenas a um controle político das Câmaras Municipais, sem atuação do Ministério Público de Contas para assegurar a observância das garantias constitucionais das partes, sujeita tão somente ao jogo partidário, o que não é condizente para esse tipo de controle e com o Estado Democrático.
11. Por todo o exposto, ao tempo em que compartilhamos essa importante questão com a sociedade brasileira, ressaltamos nossa confiança e exortamos o Egrégio Supremo Tribunal Federal, especialmente neste contexto em que o cidadão exige efetividade, rigor técnico e imparcialidade na fiscalização e no julgamento da aplicação dos recursos públicos, a manter o entendimento já consagrado por todos os 34 Tribunais de Contas do Brasil, Justiça Eleitoral, Ministério Público Federal e do próprio STF (ADC 29 e ADC 30), seguindo o voto já proferido pelo relator do processo. Em assim não prevalecendo, estaremos testemunhando um dos maiores retrocessos republicano e democrático e um ferimento de morte na Lei da Ficha Limpa.
Brasília, 06 de agosto de 2016.
Valdecir Fernandes Pascoal
Presidente da Atricon
Thiers Vianna Montebello
Presidente da Abracom
Marcos Bemquerer Costa
Presidente da Audicon
Julio Marcelo de Oliveira
Presidente em exercício da Ampcon
Amauri Perusso
Presidente da Fenastc
Lucieni Pereira
Presidente da ANTC
Fonte: Comunicação ANTC.