CARTA ABERTA AOS CIDADÃOS SUL-MATO-GROSSENSES
A ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS AUDITORES DE CONTROLE EXTERNO DOS TRIBUNAIS DE CONTAS DO BRASIL (ANTC), entidade de classe de âmbito nacional de representação homogênea, integrada por 22 entidades afiliadas de todas as regiões do Brasil e representativa exclusivamente dos ocupantes de cargos de provimento efetivo de Auditor de Controle Externo dos 33 Tribunais de Contas brasileiros, afiliada da Confederação Nacional de Servidores Públicos – CNSP, que representa mais de 700 mil servidores, e a Associação dos Auditores de Controle Externo do Tribunal de Contas do Estado de Mato Grosso do Sul – AUD-TCE/MS, vêm a público informar que receberam, com profundo constrangimento e preocupação, o desfecho da Operação Mineração de Ouro, deflagrada pela Polícia Federal, nesta terça-feira (8), autorizada pelo Superior Tribunal de Justiça, envolvendo três conselheiros do Tribunal de Contas do Mato Grosso do Sul[1], que, segundo veiculado pela imprensa, são investigados pela prática dos crimes de fraude à licitação, peculato, corrupção passiva[2], superfaturamento de obras públicas, venda de decisões, enriquecimento ilícito e contratação de servidores fantasmas[3], irregularidades na apreciação e julgamento de processos relativos à empresa detentora da concessão dos serviços de coleta de lixo e de tratamento de resíduos sólidos urbanos no município de Campo Grande.[4]
1. Os fatos veiculados, de extrema gravidade, afrontam a ética pública e o bem comum, provocando uma reação de indignação na sociedade brasileira. Ocorre que, apesar da gravidade e da indignação, já não mais provocam surpresa às entidades signatárias, as quais, reiteradamente, vêm apontando as disfunções institucionais que abrem caminho a interferências e práticas antirrepublicanas descortinadas na referida operação, nos moldes "parecer-caneta", dentre as quais, registre-se: a)unidades técnicas de fiscalização e instrução processual sendo coordenadas por servidores comissionados sem vínculo com o Tribunal, indicados pelos relatores a quem têm sido imputada a prática de venda de decisões, de interferências nas fiscalizações e instruções; b) não publicação dos relatórios de auditoria; c) falta de transparência dos Tribunais de Contas dificultando o controle social.
2. Operações dessa natureza, que investigam irregularidades na processualização das competências dos Tribunais de Contas, só corroboram a necessidade de as atividades de fiscalização e investigação nessas instituições serem efetivamente desempenhadas por Auditores de Controle Externo que integram o quadro próprio de pessoal exigido pela Constituição (art. 73, caput) como pressuposto para assegurar as garantias processuais dos jurisdicionados, mediante atuação imparcial, juridicamente conformada e tecnicamente qualificada em todas as fases do processo de controle externo.
2. Por isso, a sociedade e as instituições que se relacionam com os Tribunais de Contas precisam compreender que investigações na esfera de controle externo das quais participem agentes com vínculos funcionais precários apenas conferem aparência de legalidade à atuação dos Tribunais de Contas, servindo, tão somente, para a legitimação da impunidade, para ocultar a prática de atos lesivos ao patrimônio público.
3. A Constituição da República abriga as balizas norteadoras da Administração Pública, exigindo daqueles que personificam o Estado postura compatível com o dever irrenunciável de zelar pelas suas instituições. E o dever de zelo se reforça na medida em que a Constituição de 1988 ampliou, substancialmente, as competências e os instrumentos para os Tribunais de Contas fiscalizarem a aplicação de recursos públicos, o que tem produzido relevantes trabalhos indutores de maior eficiência na gestão, na prevenção e no combate à corrupção, com ações de relevo envolvendo empresas e pessoas físicas processadas no âmbito das operações levadas a cabo pela própria Polícia Federal.
3. Para o exercício dessa missão arrojada, contudo, a integridade de conduta dos Auditores de Controle Externo e dos Magistrados de Contas é essencial para resguardar a confiança dos cidadãos no resultado das auditorias e julgamento de contas daqueles responsáveis pela aplicação de recursos públicos, confiança que não há como ser alcançada com a tolerância à prática de desvios de conduta no seio dessas instituições.
4. Nesse sentido, a precaução com o grau de acreditação social é fundamental, na medida em que, rompido o substrato ético no seio dessas instituições de Estado, o estrago mostra-se irremediável, cujos efeitos se propagam de forma tal que levam ao descrédito no funcionamento e na eficácia das instituições de controle e no sentido mais amplo de justiça.
6. Isso porque a imagem institucional da Entidade de Fiscalização Superior brasileira é ativo intangível muito valioso, consoante disposto no próprio Referencial de Combate à Corrupção editado pelo TCU, razão pela qual a instituição autônoma precisa gerenciar, permanentemente, os riscos que possam comprometer a atuação dos atores que integram a instrução e julgamento no âmbito dos Tribunais de Contas, preocupação reafirmada, inclusive, pela Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (Convenção de Mérida), que tem o Brasil como um dos signatários nos termos do Decreto nº 5.687, de 2006.
5. É inegável que os fatos denunciados apresentam elevado potencial de colocar em dúvida a credibilidade da instituição responsável pelo controle do dinheiro público que pertence ao povo sul-mato-grossense, cuja missão institucional é o exercício do controle externo de toda a Administração Pública do Estado do Mato Grosso do Sul, com importante papel de prevenir a corrupção e garantir a eficiência do gasto público.
6. Por isso, investigações dessa envergadura não podem ser vistas com menosprezo ou como algo de menor potencial ofensivo à imagem das instituições da República. Tanto é assim que o art. 29 da Lei Orgânica da Magistratura Nacional (LOMAN) confere ao Tribunal ou a seu órgão especial a competência para afastar o Magistrado denunciado em ação penal.
7. As precauções com a imagem e a integridade das instituições que exercem função judicante não se restringem à esfera penal. Por acusação sobre fato de menor potencial ofensivo para a Administração Pública e para a credibilidade da Justiça – mas não menos grave, socialmente falando - recentemente, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) não apenas instaurou processo disciplinar contra o Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP)[5] que humilhou um Guarda Municipal e se recusou a cumprir medidas sanitárias contra a Covid-19, como também determinou o seu afastamento cautelar das funções.
8. Situações que coloquem “em risco a dignidade, a legitimidade e a credibilidade do Poder Judiciário, constituindo-se em séria ameaça às legítimas aspirações dos jurisdicionados de serem julgados por magistrados que não só sejam, mas também transmitam à sociedade, pelo seu comportamento funcional e social, a imagem de agentes políticos probos e imparciais” podem justificar o afastamento cautelar, conforme se depreende do Voto[6] do Corregedor Nacional do CNJ e Relator, fundamentado na Resolução CNJ nº 135, de 2011.
9. Cumpre observar que aos Magistrados de Contas não são asseguradas apenas as mesmas garantias e prerrogativas da Magistratura Nacional, mas também as restrições e medidas preventivas e corretivas previstas na LOMAN e no Código de Ética da Magistratura para assegurar a honorabilidade da Corte de Contas e a acreditação social em suas decisões.
10. O momento, pois, é de fazer cumprir a Constituição, as leis e os regulamentos que regem a Magistratura Nacional, na qual se inserem os Magistrados de Contas por imperativo constitucional (art. 73, § 3º). Trata-se de mandamentos de observância imperiosa por instituições de controle autônomas com a envergadura do TCE/MS, pois são instituições que devem funcionar como espelho para todos os órgãos jurisdicionados.
11. Diante dos precedentes verificados no Poder Judiciário - este definido constitucionalmente como espelho para o funcionamento dos Tribunais de Contas - as entidades signatárias pugnam para adoção de medidas análogas às que vêm sendo adotadas pelo CNJ.
12. Além de observar o necessário equilíbrio de forças e a imparcialidade que o caso exige, a medida cria as condições necessárias na esfera disciplinar para avaliação dos possíveis riscos à necessária imparcialidade na relatoria e participações em julgamento de quaisquer processos de controle externo.
13. Iniciativa nesse sentido demonstra-se essencial, não apenas para viabilizar a instauração de procedimento preliminar no âmbito do TCE/MS, mas para preservar a imagem da Corte de Contas perante os jurisdicionados, os Auditores de Controle Externo do Brasil, e, acima de tudo, os cidadãos sul-mato-grossenses.
14. Assim, as entidades signatárias, atentas à inquietação social e dos integrantes da carreira que representam, vêm a público pugnar pela instauração de procedimento, no âmbito do Tribunal de Contas do Estado do Mato Grosso do Sul, visando a constituir uma instância colegiada específica, integrada pelos membros da Corte de Contas, para condução da apuração na esfera administrativo-disciplinar, com a independência e a isenção que a matéria exige.
15. Não se prega, com isso, nenhum tipo de prejulgamento ou de justiçamento sobre os fatos descortinados na operação deflagrada no dia de hoje, já que a presunção de inocência vale para todos e só se pode falar em culpa após o devido processo legal, pautado em acusação fundamentada, defesa altiva e julgamento imparcial.
16. Todavia, respeitados tais preceitos constitucionais, é preciso que as instituições de controle sejam céleres nas apurações em todas as esferas de responsabilização, que se processam independentes entre si, de forma a preservar a necessária imparcialidade do julgamento em matéria de controle externo, pois a acreditação social na Corte de Contas depende de medidas nesse sentido, essenciais à defesa do patrimônio público, ao combate à corrupção e à consolidação da democracia.
17. Por fim, pautadas pela necessidade de se cultivar os princípios éticos e a própria honorabilidade do cargo de conselheiro e do próprio Tribunal de Contas do Estado do Mato Grosso do Sul, as entidades signatárias desta Carta têm o dever/missão de defender os valores constitucionais, sob pena de a inércia servir de reforço à fragilização dos pilares da Democracia, no rol dos quais se encontra o nível de confiança dos cidadãos nas instituições públicas.
De Brasília para o Mato Grosso do Sul, 08 de junho de 2021.
ISMAR VIANA
Presidente da Associação Nacional dos Auditores de Controle Externo dos Tribunais de Contas do Brasil
Presidente do Conselho de Representantes da ANTC
FABIANA FÉLIX FERREIRA
Auditora de Controle Externo
Presidente da Associação dos Auditores de Controle Externo do Tribunal de Contas do Estado de Mato Grosso do Sul – AUDTCE/MS
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CARTA_ABERTA_AOS_CIDADÃOS_SULMATOGROSSENSES_VERSÃO_FINAL_1_1.pdf
[1] https://ojacare.com.br/2021/06/08/tres-conselheiros-do-tce-sao-investigados-em-fraude-em-obras-e-contrato-do-lixo-na-capital/
[2] https://www.campograndenews.com.br/politica/pilhas-de-dinheiro-estavam-na-casa-de-conselheiro-e-operacao-entra-em-sigilo#.YL-Pl6VcP5Q.whatsapp
[3] https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/2021/06/08/pf-deflagra-operacao-que-apura-venda-de-decisoes-de-conselheiros-do-tce-ms
[4] https://midiamax.uol.com.br/policia/2021/mineracao-de-ouro-pf-e-receita-cumprem-mandados-de-investigacao-do-stj-no-tce-ms
[5]https://www.cnj.jus.br/corregedor-nacional-afasta-desembargador-do-tjsp-que-humilhou-guarda-municipal/
[6] https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/08/RD-5618-52-2020-Rel-Voto-Ementa-PAD.pdf