A corrupção é um tema central nesse atribulado século 21, em especial na Terra Brasilis, constituindo fator crítico ao alcance dos objetivos fundamentais da República. Tema recorrente nas discussões que integram pautas relevantes das questões governamentais, que passa por qualquer diagnóstico recente de problemas, alimenta também a falta de confiança do cidadão nas instituições, ensejando soluções que sejam efetivas, mas, ao mesmo tempo, menos onerosas para a gestão.
As sucessivas operações deflagradas a partir de 2013 descortinaram mais um capítulo do nefasto uso da máquina pública para a satisfação de interesses exclusivamente privados e de projetos ilegítimos de manutenção de poder ao desvirtuamento do aparato estatal montado para reprimir crimes, que passou a ser utilizado, não raras vezes, para o cometimento deles, em um cenário que efetivamente colocou a corrupção como tema central das discussões.
A corrupção é um fenômeno que pode ser entendido, em uma visão geral, como um abuso de poder, que rompe as relações do poder público e as suas partes relacionadas, desviando a finalidade da ação pública, e, consequentemente, prejudicando o interesse coletivo, inviabilizando a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Um conceito amplo, a ser desdobrado em diversas dimensões.
De forma metafórica em relação a mitologia cristã, para um exercício de entendimento, trataremos esse fenômeno por eixos, relacionados aos Quatro Cavaleiros descritos na terceira visão profética do Apóstolo João no livro bíblico do Apocalipse, a saber: peste, guerra, fome e morte. Não que a corrupção seja uma característica do fim do mundo. Pelo contrário! Ela acompanha o homem desde o início da vida social, e enxergá-la como real e que deve ser combatida é um avanço civilizatório.
O primeiro eixo a se destacar na manifestação da corrupção é a propina, que se define simplesmente pelo oferecimento de vantagens financeiras ou não para que regras sejam rompidas. A propina é o aspecto mais endêmico da corrupção, condicionando o acesso aos direitos a um passe a ser pago pelos cidadãos. A sofisticação da propina, contudo, ganhou contornos diferenciados, desvinculandoa da vantagem financeira direta, sendo materializável por meio uso de bens e serviços ofertados pelo corruptor ao corrupto como contraprestação pelo rompimento de regras, a exemplo de empréstimos de casas de praia, lanchas, aeronaves, constituindo, em última análise, enriquecimento ilícito dos beneficiários dessas benesses.
Como uma doença, a cultura da propina se enraíza na sociedade, sendo difícil encontrar a sua vacina, seja pela dificuldade de detecção, seja pelo interesse mútuo de ambas as partes, razão por que se faz necessário discutir o combate à corrupção associando esse discurso ao combate às causas que geram a questionável efetividade das instituições que tenham como missão prevenir e detectar a ocorrência de desvios de recursos públicos, bem como daquelas a quem é incumbida a missão de apurar e responsabilizar exemplarmente os malfeitores, incluindo nesse rol aqueles que abusam do poder, que traem às instituições com as quais mantêm vínculos, seja por ação, seja por omissão.
Tem-se como o segundo eixo o favorecimento, entendido, aqui, como a quebra da isonomia, em especial pela prática do conflito de interesses e pelo nepotismo, que abre larga margem para que as relações interpessoais interfiram nas relações interinstitucionais, impedindo a concretização de valores como a equidade e a meritocracia, e, por via de consequência, inviabiliza a efetividade na prestação dos serviços públicos ofertáveis aos cidadãos, comprometendo, em larga medida, a confiança necessária ao tecido social. A guerra contra o favorecimento, reconheçase, é permanente, pois essas relações são dinâmicas, e a identificação dos prejuízos às relações oriundos do conflito de interesses e do nepotismo são de difíceis mensuração.
Aliás, esses nefastos prejuízos têm constituído óbice ao regular funcionamento das instituições de controle, comprometendo a imparcialidade e impessoalidade de atuação delas, passando, em razão disso, a serem objetos de preocupação no plano internacional, integrando a meta 16.5, eleita na “Agenda 2030” da ONU, que busca a redução substancial dos níveis de corrupção e suborno, em todas as suas formas, na mesma trilha da Convenção de Mérida sobre corrupção, que, em seu artigo 6º, já evidenciava a necessidade da existência de órgão ou órgãos independentes para garantir o efetivo controle da Administração Pública. E, mais recentemente, a Resolução n. 1/18 da CIDH, que versa sobre Direitos Humanos e Corrupção, reconhecendo que a corrupção atinge os direitos humanos em sua integralidade, comprometendo as instituições democráticas e, por via de consequência, a governabilidade, agravando, assim, as desigualdades sociais.
A balança da justiça social, que busca mitigar a fome e a miséria, tem o seu desequilíbrio nos invisíveis problemas da sonegação. E esse é, portanto, o terceiro eixo escolhido, que se manifesta em diversas formas, complexas para o cidadão comum, carente de uma cultura contábil, o que dificulta o seu controle social.
A sonegação é a esquecida forma de corrupção que está no lado da receita, sempre preterida na imprensa em relação as auguras da despesa, apesar de constituir ato de improbidade tipificado na Lei Geral de Improbidade Administrativa. A fraude de receita é traiçoeira, de difícil detecção, e, de forma antecipada, priva o cidadão de benefícios que não são computados, pois aquele recurso termina por nem ser considerado no processo orçamentário, além de favorecer o enriquecimento de quem já tem mais
A lavagem de dinheiro é o quarto eixo, entendido como a viabilização da utilização de recursos de natureza ilícita, inclusive oriundos da corrupção, com o fim de conferir aparência lícita, dando a ela sustentabilidade, e vida longa, comprometendo a administração da justiça, um dos bens jurídicos tutelados pela lavagem, sendo, pois, condição sine qua non para o êxito de grandes esquemas criminosos engendrados com a finalidade de lesar o patrimônio público, que têm em seu cerne a participação de agentes públicos que cedem às pressões ilegítimas e se dispõem a participar e contribuir para o alcance da ocultação dos crimes cometidos.
Combater à corrupção, portanto, pautando-se por esses quatro eixos, depende do manifesto compromisso institucional e da visão comprometida dos agentes públicos, sobretudo os que atuam na trincheira da prevenção e do combate à malversação de recursos públicos, de quem se exige verdadeiro alinhamento com o interesse público e vontade de superar os momentos de crise ética e moral na história da República, de quem se espera claro repúdio às práticas que neutralizam o alcance da independência e imparcialidade de atuação dessas instituições, do nepotismo à propina.
Um bom combate, no qual se precisa entender a natureza do fenômeno da corrupção, suas dimensões, raízes e manifestações, para se identificar também, no campo da accountability, as possibilidades e capacidades de se desenvolver essa luta, que se faz com pessoas e instituições, e que ao contrário da narrativa apocalíptica, não se realiza em um momento específico, mas ao longo de toda uma trajetória, em uma luta incansável e permanente.
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Ismar Viana, mestre em Direito. Auditor de Controle Externo. Professor. Advogado. Autor do livro Fundamentos do Processo de Controle Externo. Membro do Instituto de Direito Administrativo Sancionador Brasileiro
Marcus Vinicius de Azevedo Braga, doutor em Políticas Públicas (UFRJ). Auditor federal de Finanças e Controle. Coorganizador do Livro Controladoria no Setor Público
ARTIGO: OS QUATRO CAVALEIROS DA CORRUPÇÃO
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