Por Ismar Viana e Marcus Vinicius de Azevedo Braga
Entre os que atuam na área de controle, tem sido comum a impressão de que área de auditoria é uma área ingrata. É que há, sempre, uma área para avaliar maior do que a sua capacidade, o que impõe o exercício de escolhas, servindo-se de técnicas de amostragem, de mecanismos da gestão de riscos ou mesmo do chamado feeling do auditor, para escolher em que ponto serão aprofundados os exames. E, uma vez feita essa escolha, enfrenta as dificuldades do mundo real, de dados desatualizados e desorganizados, assimetria informacional, tendo que associar a busca pela detecção de alguma desconformidade ao dever de obter a materialidade dessa situação, cumprindo o indisponível dever de evidenciação, seguindo a cartilha procedimental adequada, para não invalidar todo o trabalho de auditoria realizado até ali.
É bem verdade que os métodos tradicionais de obtenção dessas evidências revelaram-se instrumentos de reduzida eficácia no combate à macrocriminalidade, o que levou as instituições republicanas de controle a buscarem o caminho da atuação em conjunto, em sistemas de rede, cada uma fazendo bom uso da sua expertise e dentro do balizamento das competências constitucionais que lhes foram deferidas, com vistas a garantir a efetividade dos processos de responsabilização instaurados contra aqueles que, por vínculo legal ou contratual, manejam recursos públicos, desviando dos fins a que originariamente se dispuseram.
O agente de controle sabe bem disso, pois ele tem consciência de que seu trabalho não se faz sozinho e que ele é, na maioria das vezes, o início de um grande caminho processual, de recomendações e determinações que podem ensejar, também, responsabilização de agentes, mas que não se presta tão somente a isso, tendo em vista que a atuação da auditoria figura como eficiente instrumento indutor de melhorias na estrutura de governança dos órgãos, deixando um legado após a sua passagem,
No reino da accountability, todos trabalham em rede. Não existe um “exército de um homem só”. Todos são interdependentes, em ritos processuais e competências, que se completam, se controlam e que dividem poder, nas boas lições de Montesquieu e Max Weber. E para que a rede funcione, os nós devem ser fortes, para que se pense em efetividade. E os tempos devem ser menores que uma saudade, pois a justiça tardia é falha, é injusta, é lesiva, configurando-se uma deturpação funcional que agrava a falta de credibilidade do cidadão no aparato estatal.
E como colher louros, sem correr risco de responsabilização, como elo de uma corrente tão extensa? Esse é um desafio que talvez precise ser amadurecido, mas este ensaio, em especial, atém-se a um ponto específico da fragilidade dessa rede. O retrabalho e o desperdício de ações bem-feitas, que são desconstituídas mais à frente. O trabalho feito adequadamente e bem intencionado, e que por questões formais ou procedimentais, não se vê possível de ser utilizados em uma das consequências do trabalho de auditoria, que é a possível responsabilização de agentes, seja na esfera disciplinar, de ressarcimento ao Erário e até penal. Como evitar isso?
Não há caminho melhor do que fazer com que os auditores pensem, desde a fase embrionária de planejamento da auditoria, no dia seguinte. Pensar que o seu trabalho, consubstanciado em um documento, geralmente um relatório, é a célula mater de todo um processo que envolverá diversas instâncias, no desenho jurídico pátrio, e que lacunas e ações fora das regras maculam aquela peça de caráter inicial, gerando, mais adiante, o insucesso na concretização das medidas necessárias, tornando pouco aproveitável todo um trabalho, gerando desperdício de dinheiro público alocado para o regular desempenho da função de controle.
Assim, como o Brasil adotou o sistema de jurisdição una, embora não o de jurisdição exclusiva, é inevitável a sindicabilidade judicial de procedimentos e normas de auditoria que não guardem conformidade com as regras e princípios constitucionais que alicerçam as manifestações estatais, mormente as de caráter sancionador e reparatório, impondo as instituições de controle, sobretudo os Tribunais de Contas, que têm o poder jurisdicional-sancionador, o indisponível dever de respeito às normas de processo e garantias processuais das partes, como passagem necessária para o alcance do bom (e efetivo) controle.
Essa auditoria efetiva que se deseja, e que previna o desmonte futuro de seus achados e conclusões, precisa de uma manualização adequada, aprovada pelas instâncias competentes, e ainda, em uma prática que se paute por uma cultura permanente de treinamento, revisão pelos pares e de qualificação dos auditores governamentais, não prescindindo de programas de melhoria de qualidade dos processos e de adequado arquivamento dos chamados papéis de trabalho, como princípios basilares de uma avaliação de valor, que agrega valor, reconhecida pelas partes interessadas como tal e que permita conclusões robustas e sólidas, que sustentem ações decorrentes.
Por fim, a auditoria do dia seguinte, portanto, deve ser pautada por uma gestão do risco de auditoria capaz de afastar as variáveis que possam constituir razão dessa sindicabilidade judicial, não podendo ser realizada, pois, em hipótese alguma, por agentes que não sejam técnica e legalmente competentes para o desempenho da função de auditoria, premissa básica cuja inobservância pode dar azo a alegação de vício de competência. Deve se ater, também, ao dever de motivação, fundamentação e evidenciação dos achados de auditoria.
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Ismar Viana, mestre em Direito. Auditor de Controle Externo. Professor. Advogado. Autor do livro “Fundamentos do Processo de Controle Externo”. Membro do Instituto de Direito Administrativo Sancionador Brasileiro.
Marcus Vinicius de Azevedo Braga, doutor em Políticas Públicas (UFRJ). Auditor Federal de Finanças e Controle.
Fonte: estadao.com.br.