Controle externo em risco: da possibilidade de nulidade dos atos administrativos

GIHAD MENEZES

A nomeação de comissionados para funções de coordenação de fiscalizações nos tribunais de contas tem gerado intensos debates e controvérsias. Este artigo pretende discutir as implicações dessa prática, analisando seu fundamento legal e os problemas enfrentados. Embora discutamos hipóteses, é importante destacar que essas situações refletem realidades observadas em alguns tribunais de contas pelo país.

Os tribunais de contas têm o papel constitucional de fiscalizar a gestão dos recursos públicos. A Constituição, em seus artigos 71 a 75, define as competências e a organização dos tribunais de contas, exigindo que estas instituições possuam um quadro próprio de pessoal para o desempenho de suas atividades finalísticas. A nomeação de servidores comissionados para funções de coordenação em unidades técnicas contraria esses dispositivos constitucionais, conforme reforçado pela decisão na ADI 6.655-SE:

“Inconstitucionalidade material do §3º e caput do art. 9º da LCE 232/2013, na redação dada pelo art. 1º da LCE 256/2015, visto que conferem a um “cargo em comissão” (Coordenadores de Unidade Orgânica do Tribunal), atribuições de Estado exclusivas de cargo de provimento efetivo integrante do quadro próprio do TCE/SE, em violação aos arts. 37, II e V, e também aos arts. 70, 71, 73 e 75 da CRFB.”

A decisão reconhece que as atividades finalísticas de controle externo pressupõe de atribuições do cargo de provimento efetivo, uma vez que as competências constitucionais dos Tribunais de Contas são exercidas por servidores efetivos, a depender da natureza e complexidade e requisitos de ingresso.

Competência dos atos administrativos

A competência administrativa é o poder conferido ao agente público para desempenhar suas funções específicas. Este poder é delineado e delimitado pela lei, isto é, competência refere-se ao poder legal atribuído às entidades, órgãos e agentes públicos para realizar suas atribuições.

Além de ser um poder, a competência é também um dever, pois o agente competente é obrigado a atuar conforme determinado pela lei. Aquele que detém a competência tem o poder-dever de exercê-la. Assim, a competência é sempre um elemento vinculado do ato administrativo.

Importância dos cargos comissionados

Os cargos comissionados são importantes para a administração pública, pois permitem a nomeação de pessoas de confiança para funções de direção, chefia e assessoramento. Esses cargos são especialmente importantes para posições que exigem uma relação de confiança direta com a autoridade nomeante, permitindo maior flexibilidade e agilidade na gestão pública.

O Tema 1.010 do STF aborda a criação de cargos em comissão e os limites para sua utilização. A referida decisão, sob a relatoria do ministro Dias Toffoli, estabeleceu que:

“a) A criação de cargos em comissão somente se justifica para o exercício de funções de direção, chefia e assessoramento, não se prestando ao desempenho de atividades burocráticas, técnicas ou operacionais”

Ora, não há dúvidas que esses cargos devem ser preenchidos por pessoas que possuem uma relação de confiança direta com a autoridade nomeante, permitindo flexibilidade e agilidade na administração pública. No entanto, a utilização inadequada de cargos em comissão para o desempenho de atividades burocráticas, técnicas ou operacionais viola os princípios constitucionais e compromete a eficiência administrativa.

Funções como a de inspetor, coordenador ou chefe de auditoria exigem um alto nível de competência técnica, conhecimento especializado e experiência prática. A execução dessas tarefas requer não apenas habilidades técnicas, mas também a capacidade de tomar decisões imparciais e fundamentadas, o que é essencial para a integridade do controle externo.

Uma auditoria/fiscalização exercida por um tribunal de contas é um processo detalhado e colaborativo, que envolve várias etapas e a participação de diferentes atores. O auditor de controle externo, juntamente com a equipe que labora, comandado por um agente público, realiza a análise de documentos, verifica a conformidade com a legislação e examina a execução de contratos e despesas. É importante notar que o auditor não possui poder de polícia; sua função é técnica e investigativa.

Por exemplo, após a conclusão da auditoria, o relatório é enviado ao Ministério Público de Contas, que emite seu parecer. Com base no relatório de auditoria e no parecer do Ministério Público, os membros do tribunal de contas, reunidos em colegiado, discutem e deliberam sobre o caso, resultando em uma decisão formal com os devidos efeitos jurídicos.

Exemplos hipotéticos de nulidade

  • Nomeação de comissionado como inspetor

Hipoteticamente, ao nomear um comissionado para ser o inspetor ou coordenador de uma equipe de auditoria, por exemplo, o tribunal de contas pode violar as normas estabelecidas pela Constituição e reforçadas pela ADI 6655-SE e pelo Tema 1010 do STF. Essas jurisprudências exigem que funções de coordenação e direção de atividades finalísticas de controle externo sejam desempenhadas por servidores efetivos.

A nomeação irregular de um comissionado compromete a validade das auditorias realizadas, pois a coordenação de auditoria conduzida por um agente incompetente é um vício insanável que desvirtua todo o trabalho. Como consequência, qualquer ato administrativo resultante dessa auditoria, incluindo decisões colegiadas e acórdãos, pode ser considerado nulo desde sua origem (ex tunc).

  • Nomeação de comissionado para coordenar a análise da prestação de contas de um governo

A nomeação de um comissionado para coordenar a equipe responsável pela análise da prestação de contas de um governo jurisdicionado pode ser considerada inválida. A análise da prestação de contas é uma função crítica que exige competência técnica e independência.

A nomeação irregular de um comissionado para essa função pode resultar na nulidade dos relatórios e pareceres emitidos pela equipe, comprometendo a fiscalização das contas públicas e qualquer decisão colegiada baseada nesses documentos.

A decisão do STF na ADI 6.655-SE deixa claro que essa função deve ser desempenhada por servidores efetivos, que possuem a estabilidade e a competência técnica necessárias para garantir a integridade do processo de controle externo.

  • Da nulidade

Conforme prevê o artigo 2º da Lei nº 4.717/1965, são considerados nulos os atos lesivos ao patrimônio público, nos seguintes casos:

Incompetência (artigo 2º, ‘a’): interpretando o artigo 2º, ‘a’, a incompetência é evidenciada quando o ato não se enquadra nas atribuições legais do agente que o realizou. No caso dos tribunais de contas, a nomeação de comissionados para funções de coordenação de auditorias ou mesmo para ser Inspetor, que devem ser exercidas por servidores efetivos, resulta em incompetência. Os atos administrativos praticados por agentes incompetentes são nulos, pois a falta de competência do agente compromete a legalidade do ato desde sua origem, tornando todos os efeitos jurídicos produzidos nulos (ex tunc).

Desvio de finalidade (artigo 2º, ‘e’): o desvio de finalidade ocorre quando o agente executa o ato com um objetivo diferente daquele previsto, explícita ou implicitamente, na norma de competência. Ora, a nomeação de comissionados para funções técnicas e finalísticas, destinadas a servidores efetivos, configura desvio de finalidade, pois cargos em comissão devem ser utilizados para funções de direção, chefia e assessoramento, e não tergiversar para atividades finalísticas que exigem competência técnica. Este desvio compromete a validade dos atos administrativos, pois o ato é praticado fora do escopo autorizado, desvirtuando sua finalidade legal.

A falta de competência e o desvio de finalidade comprometem a legalidade dos atos administrativos, podendo tornar nulos desde a sua origem. Isso significa que todas as ações e decisões tomadas por agentes comissionados, nas funções de inspetor ou responsável pela análise da prestação de contas de um governo que deveriam ser desempenhadas por servidores efetivos, podem não ter validade jurídica.

É digno de nota que a Associação Nacional dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil (Atricon) incluiu, após o julgamento da ADI 6655-SE suscitado pela ANTC (Associação Nacional dos Auditores de Controle Externo dos Tribunais de Contas do Brasil), a adição de uma dimensão específica na ferramenta nacional de avaliação dos tribunais de contas para avaliar a designação dos cargos de coordenação nas unidades técnicas, chamada de MMD-TC (Marco de Medição de Desempenho dos Tribunais de Contas).

O MMD-TC é o principal instrumento de avaliação dos tribunais de contas, sistematizando parâmetros que garantem a regularidade e uniformização dessas instituições. A partir do ciclo de 2024, o MMD-TC avaliará a dimensão auditoria de controle externo, com cinco critérios, destacando-se os critérios 1.4.2 e 1.4.3, que abordam o seguinte:

“1.4.2: Existe um órgão de auditoria e instrução — Secretaria de Controle Externo ou denominação equivalente — que reúne todas as unidades finalísticas auditoriais e instrutórias, vinculado diretamente à Presidência do Tribunal de Contas e dirigido por um Auditor de Controle Externo.

1.4.3: As atividades finalísticas de auditoria, instrução processual e demais procedimentos de fiscalização são executadas e dirigidas/coordenadas exclusivamente por Auditores de Controle Externo (direção, coordenação, chefia e supervisão de unidades técnicas e em ciclos de auditoria), resguardada a prerrogativa do Relator de presidir a instrução processual, podendo a execução contar com o auxílio de outros servidores efetivos com atribuições de apoio ao controle externo ou de grau de complexidade e responsabilidade intermediárias, sem qualquer desvio de função que possa anular a instrução.”

Essa abordagem assegura que a coordenação e execução das atividades finalísticas de controle externo sejam realizadas por auditores de controle externo, protegendo a integridade e a imparcialidade das auditorias e fiscalizações. Ao medir que apenas servidores efetivos ocupem esses cargos, a Atricon promove a conformidade com as normas constitucionais e o MMD-TC desempenha um papel crucial na promoção de um controle externo mais robusto, transparente e confiável, fortalecendo a capacidade dos tribunais de contas de desempenhar suas funções de maneira eficaz e legítima

Ainda, é crível o reflexo do art. 21, §2º da Lei n. 8.429, de 1992:

“Art. 21.(…)

  • 2º As provas produzidas perante os órgãos de controle e as correspondentes decisões deverão ser consideradas na formação da convicção do juiz, sem prejuízo da análise acerca do dolo na conduta do agente.”

Ora, tal regra estabelece que as provas produzidas e as decisões dos tribunais de contas devem ser consideradas pelo juiz na aplicação das sanções no sistema de responsabilização por atos de improbidade administrativa. No entanto, a coordenação por agentes sem competência legal compromete a validade dessas provas e decisões, trazendo graves consequências.

Ademais, as mudanças legislativas aumentaram o ônus argumentativo do juiz na aplicação da Lei de Improbidade Administrativa (LIA), agravando o risco de que disfuncionalidades na processualização das competências institucionais nos tribunais de contas comprometam a efetividade do sistema de defesa da probidade administrativa. Esse cenário é especialmente preocupante porque a atuação dos tribunais de contas não se limita à esfera administrativa; ela também pode influenciar a esfera eleitoral.

Decisões dos tribunais de contas que declarem a emissão da relação de gestores de dinheiro público que tiveram contas julgadas irregulares, devido a problemas em suas contas têm um impacto direto no processo eleitoral.

Quando essas decisões são baseadas em fiscalizações e auditorias coordenadas por agentes sem a competência legal adequada, há um risco significativo de que essas decisões sejam contestadas judicialmente, levando à eventual anulação de inelegibilidades e, consequentemente, à participação de candidatos potencialmente inelegíveis nas eleições, comprometendo a justiça e o equilíbrio do processo eleitoral.

Assim, uma atuação ilegítima de um tribunal de contas pode ter repercussões na seara da improbidade administrativa e eleitoral, comprometendo todo o sistema de defesa da probidade e afetando o equilíbrio e a justiça do processo eleitoral.

Além do mais, a fiscalização realizada pelos tribunais de contas é um processo custoso, financiado pela sociedade. Cada auditoria envolve recursos financeiros significativos, desde o deslocamento e tempo dos auditores até a análise detalhada de documentos e a elaboração de relatórios. Quando essas auditorias são coordenadas por agentes comissionados, que não possuem a competência legal exigida, o risco de nulidade dos atos administrativos aumenta substancialmente.

Os prejudicados por essas fiscalizações, ao perceberem que os procedimentos possam estar eivados de vícios, podem buscar o Judiciário para contestar a validade dos atos. Isso não apenas gera um custo adicional para o sistema judicial, mas também resulta em desperdício dos recursos públicos já investidos na auditoria/fiscalização.

Conclusão

A prática de nomear comissionados para coordenações de fiscalizações nos tribunais de contas representa um desafio significativo, pois a eventual nulidade dos atos administrativos, devido à incompetência dos agentes nomeados, pode comprometer a validade e a credibilidade das fiscalizações. Repensar essa prática é essencial para fortalecer o controle externo e a gestão dos recursos públicos no sentido de garantir que inspetores e coordenadores da análise da prestação de contas do governo jurisdicionado sejam servidores competentes é um passo crucial nesse processo.

O cumprimento rigoroso das normas constitucionais e das diretrizes estabelecidas pelo Supremo Tribunal Federal não só preserva a legalidade dos atos administrativos, mas também reforça a accountability na administração pública e assegura a correta conformidade, crucial para prevenir vícios que possam anular os efeitos das auditorias e fiscalizações.

Portanto, a nomeação adequada para funções técnicas e finalísticas é fundamental para um sistema de controle externo íntegro, proporcionando um retorno justo sobre os recursos investidos. Garantir um controle externo mais eficiente e legítimo depende diretamente da competência e qualificação técnica dos servidores responsáveis por essas funções.

Gihad Menezes é advogado, presidente da Associação dos Auditores de Controle Externo do TCE/PR, graduado em Ciências Contábeis pela Universidade Católica de Santos, master of law em Direito Tributário pelo INSPER, pós-graduado em Gestão Pública pela UNIRIO, pós-graduado em Direito Público pela UNB, pós-graduado em Ética, Valores e Cidadania pela USP, professor da PUC/PR e auditor de Controle Externo do TCE-PR.

*Texto originalmente publicado no site Conjur, em 10 de junho de 2024.

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