Publicado orginalmente no site Conjur
Por Ismar Viana e José Roberto Pimenta Oliveira
A Lei Complementar nº 184, de 2021, inseriu o §4º-A ao artigo 1º da LC nº 64, de 1990, dispondo que a inelegibilidade prevista na alínea ‘g’ do inciso I do caput do predito artigo não se aplica aos responsáveis que tenham tido suas contas julgadas irregulares sem imputação de débito e sancionados exclusivamente com o pagamento de multa.
A partir disso, passou-se a questionar se essa inserção teria ou não condicionado o envio da relação à Justiça Eleitoral, de que trata o §5º do artigo 11 da Lei nº 9.504, de 1997 [1], às hipóteses de contas julgadas irregulares com imputação de débito, demandando, por via de consequência, respostas para dois questionamentos, quais sejam: a interpretação literal da mudança operada mantém compatibilidade com o fim a que busca alcançar a lei das inelegibilidades (LC nº 64/1990)? Essa mudança deu ensejo a uma necessária releitura do artigo 11, §5º da Lei nº 9.504, de 1997 (Lei das Eleições)?
Ciente de que a transformação do texto normativo em norma jurídica depende de um processo intelectivo, que se dá a partir de uma linguagem própria, competente, faz-se necessário buscar, como ponto de partida, qual o bem jurídico tutelado pelo artigo 14, §9º da CF e pelos textos normativos contidos nas legislações que nele têm fundamento constitucional de validade, para, após, perquirir qual o sentido e alcance de expressões contidas em todo o complexo normativo, a abranger, inclusive, o §5º do artigo 11 da Lei nº 9.504, de 1997.
O §9º do artigo 14 da CF dispõe que a lei complementar (LC nº 64/1990) estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para o exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta.
A Lei das Inelegibilidades busca, no âmbito do direito eleitoral, proteger a probidade e a moralidade na gestão de recursos públicos, com vistas a afastar do ambiente eleitoral democrático aqueles com vida administrativa pregressa incompatível com os parâmetros exigidos para a ocupação de cargos públicos, eletivos ou não, resultando possível concluir, de igual modo, que o exercício dessa tutela deve ser abrangente e não restrito.
Para a LC nº 64, de 1990, a probidade administrativa, então, é o fim buscado pela Lei Maior, constituindo base sólida da própria soberania popular. Por meio dela, a capacidade eleitoral passiva se mantém indissociável da probidade administrativa e da moralidade que se esperam de agentes no exercício de mandatos, na gestão de recursos públicos. Não por outra razão a CRFB/88 preestabeleceu, no artigo 15, inciso V, que a improbidade administrativa constitui causa de perda ou suspensão de direitos políticos.
Faz-se necessário recorrer, então, à Lei nº 8.429, de 1992 (Lei de Improbidade Administrativa) — que não rotula como atos de improbidade administrativa tão somente aqueles que geram prejuízo financeiramente quantificável ao erário (imputação de débito, reparação) — esclareça-se. Com efeito, há improbidade em condutas que importam enriquecimento ilícito (artigo 9º da LIA) e outras que ofendem os princípios da legalidade, honestidade e imparcialidade (artigo 11 da LIA).
Essa ampla tipologia de práticas corruptivas está aderente à Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, promulgada pelo Decreto nº 5.687, de 2006. A Convenção de Mérida, em seu artigo 3º, dedicado ao âmbito de aplicação, dispõe que “não será necessário que os delitos enunciados nela produzam dano ou prejuízo patrimonial ao Estado”. Isso revela, em definitivo, que a tutela de probidade e de moralidade, no Direito brasileiro, também transcende a proteção patrimonial do erário.
Definido o sentido e o alcance do §9º do artigo 14 da CF, regulamentado pela LC nº 64, de 1990, passe-se a perquirir, então, se a inserção normativa produzida pela LC nº 184, de 2021, dá ensejo, por via de consequência, a uma necessária releitura do artigo 11, §5º da Lei nº 9.504, de 1997, que estabelece normas para as eleições.
Obrigações dos Tribunais de Contas
Referido dispositivo dispõe sobre a obrigatoriedade de os Tribunais de Contas tornarem disponíveis à Justiça Eleitoral relação dos que tiveram suas contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas rejeitadas por irregularidade insanável e por decisão irrecorrível do órgão competente, ressalvados os casos em que a questão estiver sendo submetida à apreciação do Poder Judiciário, ou que haja sentença judicial favorável ao interessado.
Vê-se, pois, que a literalidade do dispositivo não restringe a inclusão na relação apenas daqueles que tiverem contas rejeitadas com imputação de débito.
A interpretação desse dispositivo deve ser feita em conjunto com outros dispositivos que integram o microssistema de responsabilização eleitoral e de tutela da probidade na gestão de recursos públicos, fundado no artigo 14, §9º da CF, e integrado pela LC nº 64, de 1990.
O artigo 1º, inciso I, ‘g’ com a redação dada pela LC nº 135, de 2010, dispõe que “são inelegíveis para qualquer cargo os que tiverem suas contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas rejeitadas por irregularidade insanável que configure ato doloso de improbidade administrativa, e por decisão irrecorrível do órgão competente, salvo se esta houver sido suspensa ou anulada pelo Poder Judiciário, para as eleições que se realizarem nos 8 (oito) anos seguintes, contados a partir da data da decisão, aplicando-se o disposto no inciso II do art. 71 da Constituição Federal, a todos os ordenadores de despesa, sem exclusão de mandatários que houverem agido nessa condição”.
A LC nº 184, de 2021, ao inserir o §4º-A ao artigo 1º da LC nº 64, de 1990, passou a dispor que a subsunção à alínea ‘g’ do inciso I do aludido dispositivo condicionou às hipóteses de contas julgadas irregulares com imputação de débito. A literalidade não pode contradizer a sistematicidade da disciplina da tutela da probidade no ordenamento jurídico.
Essa inserção normativa impõe uma interpretação sistemática, atrelada, sobretudo, ao artigo 14, §9º da CF, tendo em vista, inclusive, que não são todas as irregularidades reconhecidas pelos Tribunais de Contas que importam em imputação de débito, mesmo que configurem ato doloso de improbidade administrativa, assim como há irregularidades que envolvem atos dolosos de improbidade administrativa, mas cuja quantificação financeira do prejuízo se torna inviável, o que impede, de igual modo, a imputação de débito. Usar o critério de imputação de débito no campo material do artigo 14, §9º pode levar a conclusões não aderentes ao princípio da proporcionalidade e da razoabilidade.
Disso resulta necessário concluir que nem todo débito imputado configura, necessariamente, ato doloso de improbidade administrativa, assim como nem toda ausência de imputação de débito significa que a irregularidade seja de menor gravidade: há, sim, irregularidades graves e danosas que não ensejam imputação de débito [2].
Saliente-se a necessária distinção entre reparação e sanção, distinção impulsionada, inclusive, pela norma jurídica extraída do artigo 17-D da Lei nº 8.429, de 1992, cujo texto normativo, a um só tempo, foi expresso ao tratar que a natureza da ação por improbidade administrativa é repressiva, de caráter sancionatório, não se prestando ao controle de legalidade de políticas públicas.
Práticas de improbidade
Inúmeras situações de imputação de débito podem não ser reconduzidas a práticas de improbidade, dado que a análise, para fins de enquadramento no sistema de responsabilização por atos de improbidade administrativa, transcende os elementos objetivos, ingressando na análise de elementos subjetivos da conduta, tendo em vista que nem todo ato de má-gestão de recursos públicos é automaticamente enquadrável como ato de improbidade administrativa. Para tanto, deve-se haver subsunção objetiva (formal e material) e subjetiva, tal como singularmente tipificado na LIA, incidindo sobre condutas ilícitas, comissivas ou omissivas.
A imputação de débito está associada ao dever de reparação, que tem natureza civil, e não pode ser erigida a elemento objetivo condicionante e necessário ao enquadramento em hipótese de inelegibilidade, no bojo de sistema de responsabilização eleitoral, que, sendo sistema diverso, de natureza sancionatória, persegue a proteção de bens jurídicos diversos da colimada pela reparação.
Assim, se a interpretação a ser conferida ao §4º-A do artigo 1º da LC nº 64/90 for no sentido de que somente as decisões de controle externo que tiverem imputação de débito se enquadram na inelegibilidade de que trata a alínea ‘g’ do inciso I do aludido artigo, essa não estará compatível com o bem jurídico tutelado pela norma: proteger a probidade administrativa no exercício de cargos e funções públicas.
Nesse sentido, inclusive, entendeu o Tribunal Superior Eleitoral, no RO 0602597-89.2022.6.26.0000, ao acolher voto do ministro Benedito Gonçalves, para quem não é razoável que o §4º-A do artigo 1º da LC nº 64/1990 seja aplicado “de modo absolutamente incompatível com a proteção dos valores da probidade administrativa e da moralidade para o exercício do mandato”.
Frise-se que a finalidade de os tribunais de contas enviarem relação de agentes com contas rejeitadas, de que trata o §5º do artigo 11 da Lei 9.504, de 1997, é possibilitar a subsunção, pela Justiça Eleitoral, frise-se, ao texto normativo descrito no artigo 1º, inciso I, alínea ‘g’ da LC nº 64, de 1990, e não de realizar essa subsunção, por meio de valoração fático-probatória.
Os tribunais de contas, exercendo controle externo, não têm competência constitucional, expressa ou implícita, para responsabilizar agentes pela prática de ato doloso de improbidade administrativa (embasado no artigo 37, §4º da CF), assim como não têm competência para interditar a capacidade eleitoral passiva de agentes que tenham manejado recursos públicos, daí por que a aplicação do §4º-A do artigo 1º da LC nº 64/90 cabe à Justiça Eleitoral.
Isso conduz a que, para fins de concretização da competência institucional de que trata o artigo 71, XI e 75 da CF (c/c artigo 1º, §3º, I da Lei nº 8.443, de 1992), que as decisões de controle externo, camerais ou plenárias, ostentem em tópico próprio (sugeridamente intitulado “da cientificação eleitoral”), indiquem se as irregularidades apuradas e julgadas por meio do respectivo processo enquadram-se, apenas em tese, no artigo 1º, inciso I, ‘g’ da LC nº 64/1990, independentemente de existir ou não imputação de débito, deliberando o colegiado, então, pela inclusão ou não do nome do responsável na relação de que trata o §5º do artigo 11 da Lei nº 9.504, de 1997. O que é juridicamente relevante é a configuração da ofensa ao bem jurídico protegido, a probidade e moralidade na situação do caso concreto.
Por outro lado, conclui-se que a mudança legislativa operada pela LC nº 184, de 2021, quando compatibilizada com o artigo 3º da Convenção de Mérida, conduz a uma interpretação no sentido de que a ausência de imputação de débito não constitui óbice intransponível a que uma irregularidade qualificada como ato de improbidade venha a ser enquadrada na alínea ‘g’ do inciso I do artigo 1º da LC nº 64, de 1990.
[1] Art. 11. Os partidos e coligações solicitarão à Justiça Eleitoral o registro de seus candidatos até as dezenove horas do dia 15 de agosto do ano em que se realizarem as eleições.
[…]
§ 5º Até a data a que se refere este artigo, os Tribunais e Conselhos de Contas deverão tornar disponíveis à Justiça Eleitoral relação dos que tiveram suas contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas rejeitadas por irregularidade insanável e por decisão irrecorrível do órgão competente, ressalvados os casos em que a questão estiver sendo submetida à apreciação do Poder Judiciário, ou que haja sentença judicial favorável ao interessado.
[2] Nesse sentido é a inteligência do §2º do artigo 13 do Decreto n. 9.830, de 10 de junho de 2019, que regulamenta o disposto nos art. 20 ao art. 30 do Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942, que institui a Lei de Introdução às normas do Direito brasileiro, cujo teor dispõe que eventual estimativa de prejuízo causado ao erário não poderá ser considerada isolada e exclusivamente como motivação para se concluir pela irregularidade de atos, contratos, ajustes, processos ou normas administrativos.
Ismar Viana é presidente da ANTC, mestre em Direito, auditor de Controle Externo, advogado e professor.
José Roberto Pimenta Oliveira é professor de Direito Administrativo dos cursos de graduação e pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e doutor em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).