*Por Lucieni Pereira
Artigo publicado originalmente no Conjur.
Este artigo desenvolve uma reflexão sobre a reserva de vagas em concurso público federal frente à proibição constitucional de se adotar diferença de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil (artigo 7º, XXX c/c artigo 39, §3º). Embora tenha o Concurso Nacional Unificado (CNU) como pano de fundo, que adotou três tipos de reserva de vaga (pessoa com deficiência e cotas raciais para negros e indígenas), a exposição tem como foco analisar a compatibilidade da reserva de vaga em concursos públicos civis com o regime jurídico-constitucional.
A despeito da proibição taxativa, as pressões de grupos sociais e políticos são crescentes e diversificadas, perfazendo um total de 12 propostas legislativas, que seguem a trilha das cotas raciais vigentes. Esse movimento não era inesperado, tanto que o próprio ministro Gilmar Mendes manifestou preocupação durante o julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) nº 41 sobre a Lei nº 12.990/2014, que instituiu a reserva de vagas com recorte racial.
A decisão mencionada, embora seja respaldo para as atuais cotas para negros, não abordou aspectos restritivos de densa relevância constitucional dos cargos civis (artigo 7º, XXX c/c artigo 39, §3º), desencadeando perigoso efeito multiplicador.
Caminho árduo
Em artigo jurídico primoroso, o então procurador da República e professor Edilson Vitorelli (2016) [1], que se destaca como pensador sobre o tema e defensor de minorias, fez análise crítica acerca da instituição de reserva de vaga em concursos públicos. O autor observa quão difícil foi o caminho para estabelecer um sistema de recrutamento que livrasse o serviço público dos muitos vícios que o acompanharam ao longo da história. Conclui com o alerta de que aceitar “a constitucionalidade das cotas para negros em concursos públicos é aceitar que, no futuro, o legislador está autorizado a criar outras exceções à norma constitucional”.
Passados sete anos, as previsões se confirmam. Em 2023, foi aprovada a Lei nº 14.724 para reservar de 10% a 30% das vagas da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) aos indígenas (artigo 29). Não há precedente de direcionamento a órgão parecido. A única exceção constitucional ao concurso público amplo consiste na possibilidade de gestores de saúde contratarem gentes comunitários de saúde e de combate às endemias por processo seletivo público restrito à localidade onde as atividades serão desenvolvidas (artigo 198, §§ 4º e 5º). Nesta situação, tais agentes são submetidos aos regimes celetista e geral de previdência social, conforme disciplinado pela Lei Federal nº 11.350/2006.
Projetos em debate
A fragmentação e o direcionamento do acesso a cargos públicos podem ganhar dimensões ainda mais desafiadoras com os projetos em discussão no Congresso Nacional.
Projeto | % Reserva de Vaga | Grupo / Critério | ||
PEC 490/2010 (desarquivada em 2019) | Lei de cada ente definirá | Todos os cargos e empregos públicos de Municípios com até 20 mil habitantes | Residentes dos Municípios com até 20 mil habitantes (3.861 cidades) | |
PL-2525/2011 | 20% | Todos os concursos públicos federais | Pessoas de baixa renda | |
PL-5487/2023 | 100% | Critérios de proporcionalidade demográfica atualizados pelos Censos do IBGE | Por Gênero | 1. Subcota de 15% para pessoa com deficiência
2. Subcota proporcional Cor-Raça (brancos, pardos, pretos, amarelos e indígenas), com nova subcota proporcional por faixa etária (jovens de 16 a 29 anos; adultos de 30 a 59 anos; e idosos a partir de 60 anos |
PL-4020/2019 | 20% | Concursos públicos federais | Mulher | |
PL-3510/2020 | 15% | Concursos públicos federais | Mulher | |
PL-5476/2020 | 20% | Concursos públicos federais dos três Poderes da União e indireta | Indígena | |
PL-4386/2019 | 20% | Magistério público da educação básica e contrato temporário | Indígena | |
PL-2489/2023 | 20% | Funai | Indígena | Subcota de 1/3 para mulher indígena |
PL-4636/2023 | 2% | Concursos públicos federais | Pessoas transgênero e não binárias | |
PL-5361/2019 | 25% | Órgãos de segurança pública civis e militares nos Estados e DF | Mulher | |
PL 1529/2021 | 20% | Órgãos de segurança pública civis e militares nos Estados e DF | Mulher | |
PL-1958/2021 | 30% | Concursos para Poderes da administração federal (amplia de 20% para 30%) | Negros |
A Câmara dos Deputados já aprovou o PL nº 1.529/2021, que agora tramita no Senado. A proposta não considera diferenças [2] significativas do regime constitucional definido para servidores civis da segurança pública (artigo 39, § 3º) e para militares dos órgãos estaduais (artigos 42, § 1º e 142, § 3º, VIII, e 144, § 6º), sem sopesar os impactos fiscais [3] que uma possível igualação poderá acarretar para os estados.
Apenas para exemplificar o risco expansivo, são nove temas ou áreas de políticas: “direitos da pessoa idosa”, “direitos da pessoa com deficiência”, “gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais”, “povos indígenas”, “políticas públicas para as mulheres”, “direitos da criança e do adolescente”, “juventude”, “promoção da igualdade racial” e “comunidades brasileiras no exterior” (2012) [4]. Desses grupos, o texto constitucional só admite, ao menos de forma expressa, reserva de vagas para pessoas com deficiência, afastando, de forma inequívoca, a vedação vigente.
Expansionismo infraconstitucional
As iniciativas não se limitam às propostas legislativas, avolumando-se práticas administrativas com elevado efeito multiplicador. Em 2022, o Ministério Público do Trabalho (MPT) fixou reserva [5] de vagas para indígena e/ou quilombola (5%) e transgênero (3%) nos concursos de procurador do Trabalho.
O Ministério Público da União (MPU) [6], por sua vez, fixou cotas para minorias étnico-raciais e pessoas transgênero (10%) nos concursos públicos de servidores e estagiários de nível superior e profissionalizante. E se discute na Procuradoria-Geral da República proposta para alterar a Resolução CSMPF nº 219, de modo a reservar 3% das vagas de procurador da República a pessoas transgênero.
Todo esse expansionismo infraconstitucional caracteriza nitidamente um problema de risco moral para o instituto do concurso público, na medida em que cada Poder e órgão passa a flexibilizar a via de acesso a cargos públicos civis de acordo com as conveniências do momento, o que pode levar ao descrédito do instituto.
Nesse cenário de pressões políticas e iniciativas administrativas, foi lançado o CNU para preenchimento de 6.640 cargos efetivos. Das vagas oferecidas, 5% foram reservadas a pessoas com deficiência, 20% a pessoas negras, e, no caso específico do concurso da Funai, 30% a indígenas.
Na mesma toada, em 15/01/2024, a Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão, com base nos Procedimentos nº 1.35.000.000061/2024-81 (Sergipe) e nº 1.10.000.000024/2024-42 (Acre), expediu a Recomendação nº 001/2024 para que o Poder Executivo federal retificasse, em 72 horas, o edital do CNU de modo a incluir a reserva de 2% das vagas para pessoas transexuais no processo seletivo para preenchimento de 900 vagas do cargo efetivo de Auditor-Fiscal do Trabalho. Nada dispôs sobre os demais cargos.
Parâmetro desproporcional
Estudos sinalizam possível desproporcionalidade no parâmetro recomendado a título de reserva. Levantamento [7] publicado na Revista Científica Nature Scientific Reports [8] aponta que 12% de brasileiros adultos se declaram assexuais, lésbicas, gays, bissexuais e transgênero.
Desse grupo, 0,68 ponto percentual (p.p.) refere-se a pessoa transgênero (em cujo grupo se insere o transexual [9]) e 1,18 p.p. diz respeito a pessoas não-binárias, perfazendo 1,86 p.p. os dois grupos. O IBGE ainda não dispõe de números oficiais acerca de orientação sexual e identidade de gênero, com previsão de divulgá-los só a partir de 2025.
A vasta lista de propostas legislativas que tramitam no Congresso Nacional expõe o desafio de inaugurar cotas para cargo público à revelia da reserva legal e com base em indicadores inconsistentes.
As convenções e tratados internacionais, ainda que internalizados com status de emenda constitucional, devem ser interpretados em harmonia com os dispositivos constitucionais vigentes, notadamente quando se trata de restrições expressas, como é o caso da vedação do inciso XXX do artigo 7º c/c § 3º do artigo 39 da CF. Não são suficientes para afastar vedação expressa. O paralelo que se tenta fazer com o precedente que declarou constitucional a reserva de vagas para ingresso na graduação também não se presta como fundamento para instituição de cotas ‘trans’ no serviço público.
A relevância do concurso público caminha com a democratização do Estado de Direito, já que a oportunidade de acesso ao serviço público guarda relação direta com o fortalecimento das instituições públicas. Isso só foi possível porque a investidura em cargo público civil está condicionada à aprovação prévia em concurso público que deve ser realizado de forma compatível “com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego” (artigo 37, II), o que traduz o caráter eminentemente técnico do instituto.
Conquista civilizatória
Para além da simples ideia de meritocracia — embora ela esteja presente —, o concurso público constitui importante instrumento de democratização do acesso ao serviço público. É, acima de tudo, uma conquista civilizatória do Estado democrático de direito. Essa é a ideia posta no julgamento da ADI nº 917-MC.
Com reservas multissegmentadas, cumulativas e em percentuais elevados, as cotas representam ponto de ruptura com a tradição de igualdade indistinta na busca por cargos públicos civis, o que requer a promoção de debates com largueza e sem preconceito, de modo que as ideias e as iniciativas possam resistir a uma análise crítica, desapaixonada e rigorosamente jurídica.
Não se ignoram os desafios das desigualdades sociais e até mesmo regionais para que candidatos que se insiram em grupos vulneráveis possam conquistar a aprovação em concurso público. O programa preparatório da Prefeitura de Maricá-RJ, com recorde de aprovação no vestibular-2024 da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), e o programa Esperança Garcia, lançado pelo governo federal para aumentar a participação de negros e mulheres nas carreiras jurídicas, despontam como exemplos positivos de como políticas públicas focadas na educação podem ser eficazes na promoção de igualdade de oportunidades.
Desse modo, a posição que aponte a multissegmentação de reserva de vagas como meio de redução de desigualdades, inclusão social ou mesmo distribuição de renda, além de revelar desprestígio à vedação do inciso XXX do artigo 7º c/c § 3º do artigo 39 da CF, não enfrenta com fidelidade os fatores estruturais subjacentes que contribuem para a exclusão e a desigualdade.
Via para a mudança
Quando restrições constitucionais se tornam desalinhadas com os valores e ideais vigentes na sociedade, é possível que surjam discussões sobre a necessidade de sua atualização ou reforma. A alteração da Constituição, entretanto, requer um processo legislativo específico e rigoroso, refletindo a importância e a estabilidade das normas constitucionais.
O discurso de Ulysses Guimarães em 1988 ilustra bem o respeito que o ‘governo das leis’ [10] dispensa à CF, mesmo reconhecendo a sua imperfeição e a possibilidade de sua revisão e reforma. A ênfase dada à necessidade de obediência à CF reforça o compromisso democrático, que se traduz não apenas pela submissão das ações políticas e governamentais aos juízos de eficiência, mas também ao da conformidade com os princípios e normas constitucionais e os processos formais e legítimos para sua modificação.
Portanto, se houver razoável consenso de que os requisitos e as restrições constitucionais para admissão de servidores públicos civis não mais correspondem aos ideais contemporâneos, a via legítima e adequada para a mudança é a emenda à Constituição, seguindo os trâmites democráticos e legais estabelecidos para tal fim.
Assim sendo, é oportuna a discussão sobre a conveniência de abolir as salvaguardas definidas na CF para ingresso em cargos públicos civis. Aplicá-las de forma casuística aos concursos militares [11] e ignorá-las nos civis não reflete a noção democrática de um Estado de direito constitucional.
Parafraseando a lição do professor Vitorelli, seria mais popular, talvez “politicamente correto”, se o presente artigo concluísse no sentido de que tanto o legislador — em sede de lei ordinária — quanto os administradores possam desconsiderar a restrição constitucional que proíbe diferença de “critério de admissão por motivo de sexo, idade,cor ou estado civil“ como fatores de desigualação jurídica.
Além de violar proibição expressa disposta na lei maior, a atividade científica e, em especial, o exercício das funções de controle e julgamento exigem que as “evidências sejam verificadas com frieza, mesmo por quem se dedica à causa da proteção das minorias”, atitude que traduz, com fidelidade, o ideal de imparcialidade da CF e da Lei Orgânica do TCU.
[1] VITORELLI, Edilson. O equívoco brasileiro: cotas raciais em concursos públicos. RDA – Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 271, p. 281-315, jan./abr. 2016. Disponível em: https://periodicos.fgv.br/rda/article/download/60768/60061/130924
[2] PEREIRA, Lucieni. Texto para Debate: Reserva de Vagas para Acesso a cargos Públicos no Regime Jurídico-Constitucional Brasileiro, 2023. Disponível em: https://www.audtcu.org.br/comunicacao/artigos/1291-texto-para-debate-reserva-de-vagas-para-acesso-a-cargos-publicos-no-regime-juridico-constitucional-brasileiro
[3] PEREIRA, Lucieni. Julgamento do STF sobre igualdade de gênero pode gerar impacto fiscal para União e Estados, 2023. Disponível em: https://www.audtcu.org.br/comunicacao/artigos/1294-julgamento-do-stf-sobre-igualdade-de-genero-pode-gerar-impacto-fiscal-para-uniao-e-estados
[4] Texto para Discussão, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Disponível em: https://www.ipea.gov.br/participacao/images/pdfs/td_1741.pdf
[5] Resolução MPT nº 198/2022
[6] Portaria PGR/MPU nº 209/2023
[7] https://jornal.unesp.br/2022/10/24/levantamento-quantitativo-pioneiro-na-america-latina-mapeia-comunidade-algbt-no-brasil/
[8] Spizzirri, G., Eufrásio, R.Á., Abdo, C.H.N. et al. Proportion of ALGBT adult Brazilians, sociodemographic characteristics, and self-reported violence. Sci Rep 12, 11176 (2022). Disponível em: https://doi.org/10.1038/s41598-022-15103-y
[9] https://www.hypeness.com.br/2021/10/trans-cis-nao-binario-listamos-as-principais-duvidas-sobre-identidade-de-genero/
[10] BOBBIO, Norberto, O futuro da democracia, São Paulo: Paz e Terra, 1986.
[11] Total de 18 ações que tramitam no STF. Disponível em: https://www.audtcu.org.br/comunicacao/artigos/1294-julgamento-do-stf-sobre-igualdade-de-genero-pode-gerar-impacto-fiscal-para-uniao-e-estado
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