*Ismar Viana
Nas últimas semanas, a imprensa veiculou críticas de parlamentares e especialistas ao crescimento de indicações de cargos em comissão no âmbito da Administração Pública. A opinião corrente é de que essas nomeações vão na contramão de promessas de campanha, nas quais se defendia a qualidade dos serviços públicos e do gasto público.
A prática patrimonialista atinge as três esferas de governo e os municípios são os entes federados mais impactados, por possuírem maior demanda por cargos públicos. Segundo estudo do FONACATE, houve crescimento na ocupação de cargos públicos no Brasil nos últimos trinta anos, em maior escala na esfera municipal, que concentra 57% dos servidores. Esse crescimento se encontra associado à expansão de serviços de assistência social, educação e saúde.
Não se pode desprezar a realidade: a vida acontece nos municípios. O cidadão, que quer seus interesses atendidos, não bate à porta do Presidente da República ou dos governadores dos Estados. É também por isso que os municípios brasileiros precisam de servidores públicos integrantes do quadro permanente, devidamente qualificados, até para evitar a descontinuidade na prestação dos serviços públicos, um verdadeiro "reset" a cada gestão, especialmente porque já ficou mais do que demonstrado que a alta rotatividade no provimento de cargos públicos é óbice à evolução, ao alcance de uma historicidade de dados e informações, inviabilizando, assim, o conhecimento exigido para a formulação de políticas públicas baseada em dados.
Diante da recorrência dessa disfunção institucional, é natural questionar se o ordenamento jurídico brasileiro dispõe de mecanismos para combater esses desvirtuamentos na ocupação de cargos públicos. A resposta é "sim". Temos normas suficientes para reverter essa prática.
Comecemos pela Lei Maior da República, que traz o cargo efetivo como regra, e o comissionado como exceção, apenas nas hipóteses restritas. Comentando sobre os novos parâmetros normativos, a Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei n. 14.133, de 2021) passou a exigir que o agente de contratação, aquele que deve tomar decisões e acompanhar o trâmite da licitação, deva ser um servidor efetivo ou empregado público integrante dos quadros permanentes da Administração Pública.
Ela impõe, também, que a designação dos demais agentes públicos para o desempenho das funções essenciais à execução dela, abrangendo, inclusive, os fiscais de contratos, deva recair, preferencialmente, sobre servidor efetivo ou empregado público dos quadros permanentes da Administração Pública. Como se sabe, ordem de preferência não é ordem de alternatividade. Nesses casos, a autoridade máxima do órgão ou da entidade deverá justificar a razão pela qual eventual escolha não tenha recaído sobre um servidor efetivo, motivando sobre os obstáculos e dificuldades reais para se eximir de responsabilização, indicando, ainda, prazo para a regularização da situação encontrada, interpretação que se extrai, inclusive, dos artigos 21 e 22 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.
A partir de 1º de abril de 2023, os órgãos de controle deverão intensificar ações de controle para aferir adequação da Administração Pública aos comandos normativos contidos na Nova Lei de Licitações e Contratos, pelo que se entende ser oportuno o alerta àqueles que atuam direta ou indiretamente com licitações e contratações públicas.
Mas, não é só. Ocupações irregulares de cargos públicos, a depender do alto grau de ofensa à probidade na organização do Estado e no exercício das suas funções, podem configurar ato de improbidade administrativa rotulado no inciso V do artigo 11 da Lei Geral de Improbidade Administrativa, com a redação dada pela Lei n. 14.230, de 2021, que tipifica como ato ímprobo a conduta de frustrar, em ofensa à imparcialidade, o caráter concorrencial de concurso público, de chamamento ou de procedimento licitatório, com vistas à obtenção de benefício próprio, direto ou indireto, ou de terceiros, aqui incluídas as contratações temporárias de pessoal firmadas ao arrepio do Texto Constitucional, conforme tem decidido o Superior Tribunal de Justiça.
Não há, portanto, déficit de normatividade para responsabilizar quem se vale das indicações para a satisfação de interesses pessoais, o que há, na verdade, é baixo grau de maturidade institucional para tratar esses desvios de finalidade como um ato lesivo à reputação institucional, para enfrentá-los, não raras vezes, como ato ímprobo passível de responsabilização pessoal das autoridades a quem coube a indicação sem observar os parâmetros normativos que regem o provimento de cargos públicos.
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*Ismar Viana é doutorando em Direito Administrativo pela PUC-SP. Professor. Auditor de Controle Externo. Advogado. Membro do Instituto de Direito Administrativo Sancionador Brasileiro (IDASAN) e da Comissão de Direito Administrativo Sancionador da OAB nacional. Presidente da Associação Nacional dos Auditores de Controle Externo dos Tribunais de Contas do Brasil
** Artigo originalmente publicado no Blog do Fausto Macedo, no Estadão, em 08/03/2023