A atuação efetiva do TCU na detecção e repressão de fraude e corrupção

É conhecido o mito grego de Cassandra, a profetisa filha do rei Príamo de Troia, condenada a prever corretamente os acontecimentos, inclusive a destruição de Troia, e ser sempre considerada louca e desacreditada. Milênios depois, vale averiguar se história semelhante não vem se repetindo em matéria de fraude e corrupção.

Em 1º de fevereiro de 2022, foi publicado, no JOTA, um artigo do advogado e professor da PUC-SP Dr. Jacintho Arruda Câmara intitulado “Como avaliar a eficácia do combate à corrupção?”, em que o autor perguntava se a atuação do Tribunal de Contas da União (TCU) seria relevante nessa temática.

Para tanto, propõe que as provas coletadas na Lava Jato poderiam ser confrontadas com os achados na ação do TCU, indicando que as respostas a duas questões permitiriam avaliar a eficácia do Tribunal: “1) se os desvios foram descobertos a partir das investigações penais (na maior parte por delações) e não decorreram da apuração do controle externo; 2) se parte desses desvios só foi descoberta após a realização de auditorias”.

Num primeiro artigo, abordou-se o aparente equívoco em dizer que o enfrentamento da corrupção “não seria função institucional” do TCU. Tal posição está em confronto com a Constituição Federal de 1988 e com inúmeras referências internacionais.

Neste segundo artigo, pretende-se trazer alguns elementos para o outro aspecto que envolve a discussão proposta pelo advogado e professor, isto é, se teria havido ou não contribuição do TCU na descoberta inicial de vultosos ilícitos descortinados pela Operação Lava Jato. Sem pretender esgotar o debate, cabe trazer as seguintes informações.

No caso de licitações e contratos de obras da Petrobras atingidos por fraude à licitação, propina, cartel e outros ilícitos, convém lembrar que o TCU vem fiscalizando alguns desses empreendimentos, a exemplo da Refinaria Abreu e Lima (RNEST/PE), da Refinaria Presidente Vargas (Repar/PR), entre outros (Barra do Riacho, Comperj etc.), especialmente desde 2007, ou seja, seis anos antes de a Lava Jato ter iniciado sua primeira fase[1]. A atuação do TCU na prevenção ao desvio nas obras públicas sempre foi reconhecida pela imprensa[2].

Na primeira auditoria feita na RNEST, logo no início da sua terraplenagem, em 2008, foram apontados indícios de irregularidades de extrema gravidade e com elevado risco de concretização de prejuízos bilionários aos cofres da Petrobras, os quais resultaram em propostas tempestivas de interrupção do dispêndio de recursos públicos no empreendimento, a fim de impedir o crescimento exponencial do superfaturamento quantificado pelas equipes de auditoria e validado pelo plenário do TCU[3].

A proposta chegou a ser aprovada no Congresso Nacional[4] e os empreendimentos foram indicados para bloqueio de recursos orçamentários na Lei Orçamentária Anual de 2010 submetida ao Poder Executivo. Entretanto, o então chefe do Poder Executivo exerceu sua competência constitucional de veto e, a despeito de todos os alertas do TCU e dos consultores legislativos do Congresso Nacional, decidiu prosseguir com a execução dos empreendimentos[5]. Todos esses contratos foram, posteriormente, implicados na Operação Lava Jato.

Também em 2009, auditorias realizadas nas obras da Repar, do Comperj e do CENPES resultaram em achados como sobrepreço e restrição à competitividade (potencial fraude) da licitação[6]: as mesmas irregularidades confirmadas anos depois nas ações penais por meio de instrumentos como quebras de sigilo fiscal, bancário e telefônico/telemático e colaborações premiadas.

Vale comentar que as auditorias enfrentaram vários obstáculos, inclusive atraso e sonegação de documentos à equipe de fiscalização do tribunal[7]. Planilhas de custos e preços das licitações e dos contratos não eram fornecidas pela Petrobras. A despeito disso, o TCU pôde alertar a sociedade e os tomadores de decisão acerca dos inúmeros riscos que cercavam os empreendimentos. O entendimento do TCU e do Congresso Nacional foi ignorado, propinas e superfaturamentos foram materializados[8].

Aliás, o TCU, desde 2008, arrolou como responsáveis pelas irregularidades alguns dos agentes públicos posteriormente implicados em fraude e corrupção em investigações penais. Referida decisão de incluir esses agentes como responsáveis por potenciais irregularidades foi o que chamou a atenção do Ministério Público Federal (MPF) e do Departamento de Polícia Federal (DPF) para investigá-los. Assim, solicitaram acesso aos relatórios de auditoria do TCU[9], o que foi fundamental para o início das investigações.

Vale lembrar que o controle externo não possui ferramentas típicas de investigação penal, a exemplo de interceptação telefônica/telemática, ou acesso a dados bancários e fiscais sigilosos, as quais permitem colher evidências mais sólidas de atos dolosos de conluio entre empresas, fraude e/ou corrupção, haja vista que esses ilícitos sempre ocorrem em ambiente de segredo e informalidade.

Ainda assim, o TCU desempenhou papel importante na detecção tempestiva de irregularidades graves em licitações e contratos da Petrobras, e de outros órgãos, e esse trabalho foi fundamental para que outros órgãos, valendo-se desses elementos, igualmente atuassem e aumentassem o conhecimento do Estado acerca dos ilícitos inicialmente detectados pelo TCU.

Além desses casos, há outros exemplos que poderiam ser mencionados de irregularidades inicialmente detectadas por equipes técnicas do TCU e que, posteriormente, foram alvo de investigações penais pelo Ministério Público Federal ou por autoridades policiais, entre os quais: 1) fiscalizações semestrais nas obras da Usina Termonuclear de Angra 3 desde 2008 e deflagração da Operação Radioatividade em 2015; 2) fiscalizações em obras da Ferrovia Norte-Sul desde 2005 e deflagração das Operações Trem Pagador, O Recebedor e Tabela Periódica entre 2012 e 2016, entre inúmeros outros casos.

Mesmo que a ocorrência dos tipos penais relativos à fraude e corrupção possa não ter sido comprovada posteriormente, várias auditorias do TCU, apesar de desprovidas de ferramentas típicas de investigação penal, evitaram que frutos de tais ilícitos pudessem se concretizar por meio de superfaturamentos das mais diversas naturezas. Há ainda casos em que a irregularidade foi corrigida no curso da auditoria, antes de ser apontada no relatório final. De 2010 a 2015, as auditorias de obras realizadas indicaram benefícios financeiros na ordem de R$ 12 bilhões, sendo que, desse total, R$ 2,25 bilhões foram concretizados durante a execução das fiscalizações[10].

O Tribunal criou em 2016 a unidade técnica especializada para lidar com os casos relacionados aos desdobramentos da Lava Jato (SeinfraOperações), o que foi noticiado com destaque pela Transparência Internacional como parte do esforço do TCU no combate à corrupção[11]. O portal do TCU na internet dá publicidade às interfaces da atuação da Corte de Contas com a Lava Jato[12].

Atualmente, o TCU tem como alguns dos desafios para assegurar a sua eficácia nessa temática:

  1. dificuldade para a responsabilização via conduta culposa (que era possível em todos os trabalhos supracitados);
  2. pouca cooperação, transparência e compartilhamento de informações de órgãos jurisdicionados ou entre órgãos pertencentes à rede de controle[13];
  3. prescrição de danos bilionários (o que tornará a decisão de fraudar/superfaturar vantajosa);
  4. judicialização excessiva, que compromete a eficácia real das sanções aplicadas;
  5. argumentos que buscam restringir as competências do TCU, aparentemente sem respaldo constitucional, visando a transformá-lo em um órgão com atuação mais tímida, talvez apenas emitindo recomendações de natureza contábil.

Portanto, é de se perguntar se o mito de Cassandra não pode novamente trazer lições em 2022 para o Brasil.

*As opiniões expressas pelos autores não necessariamente representam a visão institucional do TCU.

Victor Hugo Moreira Ribeiro é especialista em governança e controle da regulação em infraestrutura pela Escola Nacional da Administração Pública (ENAP) e auditor do TCU.

Rafael Martins é pós-graduado em engenharia diagnóstica (Unicid), pós-graduado em controle e repressão a desvios de recursos públicos (Estácio-CERS), pós-graduando em análise econômica do direito (ISC-TCU) e pós-graduando em data science (ESALQ-USP) e auditor do TCU.

Rafael C. Di Bello é mestre em ciências de engenharia civil pela COPPE/UFRJ e auditor do TCU.

Acácio Lopes Neto é bacharel em administração (UDESC/ESAG), pós-graduado em direito público com ênfase em gestão (Damásio) e auditor do TCU.

Celso Bernardes Silva é engenheiro civil (UFMG), especialista em engenharia de custos (IBMEC) e auditor do TCU


[1] Como exemplos não exaustivos dessa atuação do TCU em licitações e contratos da Petrobras anterior à Operação Lava Jato, mencionam-se os Acórdãos 3.044/2008-TCU-Plenário (Min. Rel. Valmir Campelo – https://bit.ly/3su1Qwz), 642/2009-TCU-Plenário (Min. Rel. Valmir Campelo – https://bit.ly/34vqrbW), 2.218/2009-TCU-Plenário (Min. Rel. José Jorge – https://bit.ly/34cbwU7), 274/2010-TCU-Plenário (Min. Rel. José Jorge – https://bit.ly/3AQ3YCu).

[2] Como exemplo, cita-se a matéria de capa da 1ª edição da revista Veja do ano de 2010, intitulada “Desvios Subterrâneos” (https://congressoemfoco.uol.com.br/projeto-bula/reportagem/destaques-nas-revistas-tcu-evita-desperdicios-publicos/).

[3] Vide Acórdãos 3.362/2010-TCU-Plenário (Min. Rel. Benjamin Zymler – https://bit.ly/35x3DsD) e 2.992/2010-TCU-Plenário (Min. Rel. Benjamin Zymler – https://bit.ly/3AZm70D).

[4] Vide Relatório n. 2/2009 do Comitê de Avaliação das Informações sobre Obras e Serviços com Indícios de Irregularidades Graves – COI – da Comissão Mista de Orçamento do Congresso Nacional – https://bit.ly/3ohQave, respectivamente – e o anexo VI do autógrafo do Projeto de Lei Orçamentária Anual de 2010 enviado ao Poder Executivo – https://bit.ly/3se3Zfs.

[5] Vide Mensagem de Veto n. 41, de 26 de janeiro de 2010 – https://bit.ly/3sdQFaS.

[6] Como exemplo, cita-se o Acórdão 311/2011-TCU-Plenário (Min. Rel. André Luís de Carvalho).

[7] Vide, por exemplo, os Acórdãos 1.838/2009-TCU-Plenário (Min. Rel. Benjamin Zymler – https://bit.ly/3ARWXRr) e 2.712/2009-TCU-Plenário (Min. Rel. Valmir Campelo – https://bit.ly/3s7TsCI) e a notícia publicada no link: https://bit.ly/32QMTeX.

[8] Acerca desses fatos, convém mencionar notícias da imprensa disponíveis em: https://bit.ly/3L1Rts1 e https://glo.bo/34cDXRV.

[9] A título exemplificativo, podem ser mencionados os seguintes processos de solicitação de acesso oriundos do MPF: TC 020.388/2009-7 – https://bit.ly/3GnUmQy, TC 006.201/2010-5 – https://bit.ly/3AQ7Zqk, TC 010.146/2011-3 – https://bit.ly/3giGFYu, TC 011.719/2011-7 – https://bit.ly/3oekBTh, TC 017.375/2011-8, entre outros. Semelhantemente, os seguintes processos de solicitação de acesso oriundos do DPF: TC 010.162/2011-9 – https://bit.ly/344jVJn e TC 017.396/2011-5 – https://bit.ly/3GlnV5k

[10] Id. Fiscobras: 20 anos, op. Cit., p. 167.

[11] https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/20342/Integridade%20e%20Transpare%CC%82ncia%20de%20Empresas%20Estatais%20no%20Brasil.pdf?sequence=1&isAllowed=y, p. 37.

[12] https://portal.tcu.gov.br/combate-a-corrupcao/tcu-e-a-lava-jato.htm

[13] Como exemplo desse tipo de situação, sugere-se a leitura dos Acórdãos 1.998/2020-TCU-Plenário – https://bit.ly/34d3B8Y e 1.999/2020-TCU-Plenário – https://bit.ly/330xCsg.

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Artigo publicado originalmente no portal Jota. Clique aqui para acessar!
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