Na última quarta-feira, 2, após decorrido o prazo para sanção e sem que houvesse manifestação do Governador da Bahia, a Assembleia Legislativa promulgou a Lei n. 14.460/2022, que “dispõe sobre a punição a gestores públicos no âmbito de julgamentos do Tribunal de Contas dos Municípios do Estado da Bahia”[1]. Com preceitos inéditos no Brasil, a ementa, ao utilizar o termo “punição”, já revela desconhecimento da finalidade instrumental, pedagógica, dissuasória da competência sancionadora constitucionalmente conferida aos Tribunais de Contas do Brasil.
Conforme anunciado pela ementa, a incompreensão se projetou ao texto da lei, no seu art. 1º e dois incisos, ao prever que “nos julgamentos de contas de gestores públicos, no âmbito do Tribunal de Contas dos Municípios, fica vedada a aplicação de multas e/ou responsabilização pessoal aos gestores públicos quando não comprovado o desvio de recursos em benefício próprio ou de familiares, ou quando não comprovado que o gestor agiu com dolo no ordenamento de despesas”.
Ora! Que critérios foram adotados para privilegiar gestores públicos, nada tratando sobre os demais agentes que manejam recursos públicos? Por que alcançou somente os que prestam contas ao TCMBA, mas não os que prestam contas ao TCEBA? A “aplicação de multas” está abrangida pela expressão “responsabilização pessoal”, por que a lei distinguiu? Por qual motivo não se poderia aplicar multa-reparação aos que geriram recursos públicos quando beneficiários de desvios não forem eles mesmos ou seus familiares?
Na tentativa de desfazer a incompreensão, é preciso esclarecer que as multas aplicadas pelos Tribunais de Contas têm alicerce constitucional, com fundamento no art. 71, VIII da CF/88, que trata, em síntese, da multa-sanção (ilegalidade de despesa ou irregularidade de contas), da multa-reparação (multa proporcional ao dano causado ao erário) e da multa-coerção (conferir eficácia às competências controladoras), todas previstas em lei, dentre outras cominações possíveis.
Em igual sentido, a Constituição do Estado da Bahia, em seu art. 91, XIII, reproduz a literalidade do inciso VIII do art. 71 da CF, outorgando ao TCEBA e TCMBA (sem distinção e na mesma Seção) essa competência sancionadora, inclusive nos casos de descumprimento das decisões dessas instituições incumbidas do exercício do Controle Externo da Administração Pública baiana.
É de se notar que as inserções legislativas trazidas pela Lei n. 14.460, de 2022, não superam o filtro de constitucionalidade, a começar pela escolha desarrazoada de destinatários a serem alcançados por ela (afora as controvérsias em torno da iniciativa da lei).
Apesar de o art. 1º da nova Lei não alcançar a imputação de débito (reparação de dano causado ao erário ou "responsabilização-reparação"), mas apenas as multas decorrentes desse dano (multa-reparação), desnaturou a finalidade da competência sancionadora insculpida no inciso VIII do art. 71 da CF e no XIII do art. 91 da Constituição do Estado da Bahia, ao restringir o exercício do poder sancionatório à comprovação de quem são os beneficiários de desvios de recursos públicos municipais.
Isso porque o inciso I do art. 1º trata de desvio/apropriação de recursos públicos, com abrangência limitada, portanto, à responsabilização-reparação, e, consequentemente, à multa-reparação, aplicada exatamente quando as decisões dos Tribunais de Contas ensejarem imputação de débito por danos causados ao erário. Por que restringir a aplicação de multa-reparação aos casos em que restar comprovado que o desvio beneficiou o gestor ou seus familiares, e deixar de fora os casos em que beneficiar terceiros? Referida norma estaria a estimular claramente os desvios de recursos públicos a partir de “laranjas”?
Quanto ao inciso II, apesar de a exigência de conduta dolosa se encontrar em descompasso com o artigo 28 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, que inclui o erro grosseiro como apto a ensejar a responsabilização pessoal de agentes públicos, reconheça-se que o aludido inciso dispõe sobre a atuação com dolo na ordenação de despesa, tão somente. Ou seja, não exige, como pressuposto para a responsabilização, que a voluntariedade da conduta esteja voltada a alcançar algum resultado ilícito, como dispõem, por exemplo, os §1º e 2º do art. 1º da Lei de Improbidade Administrativa reformada pela Lei n. 14.230, de 2021.
Como se vê, além de inconstitucionalidades e graves atecnias legislativas, a lei inaugura preceitos inéditos de (ir)responsabilização no Brasil. O inciso I do art. 1º da nova Lei, ao impor condicionantes à aplicação da multa-reparação e estimular o uso de “laranjas” nas práticas criminosas de desvios de recursos públicos, revela um desapreço à probidade na gestão dos recursos públicos dos municípios baianos, capaz de comprometer não só as salvaguardas constitucionais à atuação dos Tribunais de Contas, mas o acionamento dos sistemas de responsabilização por atos de improbidade administrativa e pela prática de crimes contra a Administração Pública.
Ismar Viana. É mestre e doutorando em Direito Administrativo (PUC-SP). Membro do Instituto de Direito Administrativo Sancionador brasileiro (IDASAN). Presidente da Associação Nacional dos Auditores de Controle Externo dos Tribunais de Contas do Brasil (ANTC). Auditor de Controle Externo. Professor. Advogado.
[1] https://www.al.ba.gov.br/midia-center/noticias/54470
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Artigo originalmente publicado no site do Estadão. Clique no link para acessar: https://bit.ly/3Lhewzl