O Papa Francisco e a Nova Lei de Licitações

O entendimento que a alta administração deve buscar atender às suas necessidades selecionando opções que não ostentem sinais de luxo e riqueza, que são incompatíveis com a função do estado e a realidade econômico-financeira da maioria dos contribuintes brasileiros, foi tratado no artigo 20 da Lei Federal 14.133 de 1º de abril de 2021, a nova Lei de Licitações.

Ao disciplinar a fase preparatória do processo licitatório, o caput do art. 20 estabelece que “os itens de consumo adquiridos para suprir as demandas das estruturas da Administração Pública deverão ser de qualidade comum, não superior à necessária para cumprir as finalidades às quais se destinam, vedada a aquisição de artigos de luxo”.

É evidente a intenção do legislador de conter gastos desnecessários e incompatíveis com a função pública, afastando a possibilidade de aquisição, com recursos públicos, de itens de consumo de valor vultuoso, para além do que é necessário para atender determinada necessidade com qualidade, durabilidade e eficiência.

Dada a subjetividade dos termos empregados no art. 20, o § 1º fixou a necessidade de edição de regulamento que defina o que a administração considera bens comuns e de luxo: § 1º – “Os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário definirão em regulamento os limites para o enquadramento dos bens de consumo nas categorias comum e luxo.”

A exigência de regulamentação deve ser atendida no prazo de 180 dias, contados da promulgação da Lei 14.133/21. O § 2º estabelece que, não havendo regulamentação dentro desse prazo “novas compras de bens de consumo só poderão ser efetivadas com a edição, pela autoridade competente, do regulamento a que se refere o § 1º deste artigo”.

Em síntese, o artigo 20 da Lei 14.133/21 traz para os órgãos e entidades da Administração Pública o dever de definir, em regulamento, no prazo de 180 dias contados de 1/4/21, o que são bens de consumo comuns e de luxo. Em não havendo a edição de regulamento definindo itens de consumo comuns e de luxo, o órgão ou entidade não poderá lançar licitações destinadas a aquisição de itens de consumo.

Este será, possivelmente, o primeiro de muitos regulamentos que os órgãos e entidades da administração pública deverão editar para dar efetividade às regras e inovações trazidas pela Lei 14.133/21.

Ocorre que não é fácil definir bens de consumo de luxo, há um grau de subjetividade na terminologia. Todavia, embora seja difícil definir o que é luxo, é fácil de reconhecer. Basta lembrar da polêmica licitação lançada pelo Supremo Tribunal Federal para adquirir refeições, dentre os itens havia lagosta e vinhos com elevado grau de exigências. A notícia foi publicada pela revista Veja, que detalhou o grau de exigência da Corte:

“Os vinhos recebem atenção especial. Se for vinho tinto fino seco tem de ser Tannat ou Assemblage, contendo esse tipo de uva, de safra igual ou posterior a 2010 e que “tenha ganhado pelo menos 4 (quatro premiações internacionais”. “O vinho, em sua totalidade, deve ter sido envelhecido em barril de carvalho francês, americano ou ambos, de primeiro uso, por período mínimo de 12 (doze) meses”

Se a uva for tipo Merlot, só serão aceitas as garrafas de safra igual ou posterior a 2011 e que tenha ganho pelo menos quatro premiações internacionais. Nesse caso, o vinho, “em sua totalidade, deve ter sido envelhecido em barril de carvalho, de primeiro uso, por período mínimo de 8 (oito) meses”.

Para os vinhos brancos, “uva tipo Chardonnay, de safra igual ou posterior a 2013”, com no mínimo quatro premiações internacionais”[1].

Se considerarmos a classificação tributária, o vinho, no Brasil, é um produto de luxo. Essa não é a realidade europeia que considera vinho como alimento e, por essa razão, os impostos incidentes sobre o vinho são similares aos impostos incidentes sobre gêneros alimentícios. Mesmo considerado item de consumo de luxo, é fato que existe variadas faixas de preços para diferentes públicos. Onde então estaria o luxo, no vinho propriamente dito ou no tipo específico de vinho que o STF pretender adquirir, premiado em concursos internacionais, envelhecido em barricas de carvalho de primeiro uso, produzido com safras específicas?

Para compreender melhor se é moralmente aceitável o consumo de bens de consumo de luxo por autoridades, talvez o caminho seja comparar o comportamento de outra liderança. Desde que assumiu o mais alto cargo do Estado do Vaticano, ele tem repudiado as opções luxuosas que lhe são oferecidas. Falo do Papa Francisco.

Antes mesmo de tomar posse, em 19/3/2013, o Pontífice chamou atenção pelas exigências: substituir o crucifixo de ouro pelo de prata, trocar as vestimentas repletas de ornamentos e pelas vestes brancas, o sapato vermelho pelo sapato preto comum. Até mesmo a cerimônia de posse foi chamada “pouco suntuosa” pela imprensa, estilo que o papa passou a adotar, notadamente, em sua vida e nas viagens pelo mundo.

Quando esteve no Brasil para a 26ª. Jornada Mundial da Juventude, em 2013, o jornal o Globo noticiou que seriam gastos 118 milhões de reais entre a União, Estado e Município do Rio de Janeiro com a visita do Papa Francisco, valores destinados a custear as ações de segurança e defesa do chefe de Estado, sua comitiva e do público, estimado em 800 mil pessoas. O valor expressivo gerou Ação Popular[2]. No que tange às escolhas pessoais, quando é dada opção ao papa, ele declina itens de alto custo e deixa claro sua opção pelo menos oneroso.

Em visita à Moçambique, foi noticiada a recusa do Pontífice em se hospedar no hotel de preço elevado, escolhido pela equipe responsável por planejar a viagem. A reportagem conta que “Francisco prefere algo mais simples” e assim o fez[3].

Em sua primeira visita à Coreia do Sul, o Papa também dispensou o veículo blindado e pediu para circular em um veículo simples, mais precisamente “o menor carro sul-coreano”[4]. Por questões de segurança o pedido não foi atendido, a comitiva escolheu o Soul Kia, o que está longe de ser um veículo de luxo no país, embora também não seja o menor.

Através do exemplo, o Papa Francisco tem revelado a importância de os líderes estarem atentos às escolhas e aos gastos desnecessários, que repercutem nos cofres públicos, na imagem do líder e da instituição que representa. Francisco revela que sempre existe a possibilidade de atender às necessidades de forma menos onerosa quando quem paga a conta é o contribuinte, e que é possível atingir o mesmo fim com bens e produtos similares, selecionados a partir do critério melhor custo-benefício.

O comportamento do Chefe do Estado do Vaticano, um dos países mais ricos do mundo, pode ter servido de inspiração para o legislador brasileiro impor restrição à aquisição de bens de consumo de luxo pelas autoridades locais. Nada contra consumir vinhos caros e lagosta. Mas quando a conta é paga pelo contribuinte, soa deselegante exigir os itens mais caros do cardápio.

*Flávia Geórgia Quaesner Toledo  – é advogada e auditora de controle externo do TCE/PR, especialista em Direito Administrativo e em Gestão Pública, palestrante da Escola de Gestão Pública.

[1] https://veja.abril.com.br/politica/stf-faz-licitacao-de-r-11-milhao-para-comprar-lagostas-e-vinhos/
[2] Tribunal Regional Federal da 1ª. Região (TRF-1). AC 0038730-46.2013.4.01.3400.
[3] https://extra.globo.com/noticias/papa-francisco-recusa-hospedagem-em-hotel-caro-em-mocambique-23918977.html
[4] https://epoca.oglobo.globo.com/tempo/noticia/2014/08/em-viagem-papa-francisco-pede-bmenor-carro-da-coreia-do-sulb.html

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Artigo originalmente publicado no site do Instituto Rui Barbosa. Acesse aqui.

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