*Por Ismar Viana e Thaís Marçal
Diante da discussão em torno do ativismo funcional, da zona de tensionamento entre independência funcional e unidade institucional, você já se perguntou se é possível interditar arbítrios tendo como parâmetro a tradicional classificação dos atos administrativos?
Para analisar essa questão, vamos traçar como marco a lei 13.655, de 2018, que, ao introduzir na LINDB disposições sobre segurança jurídica na aplicação do direito público, deflagrou debates que abrangem a necessidade de releituras de certos institutos jurídicos, formados em outro contexto político, econômico, social e jurídico.
Referidas releituras alcançam, por exemplo, os atributos ou elementos dos atos administrativos e controladores, especialmente a presunção de legitimidade, levando operadores do direito aos seguintes questionamentos: Em que medida o novo panorama legislativo teria alocado o manifesto desrespeito às competências institucionais e atribuições de cargos públicos como condição de existência do ato controlador? Afinal, quais os limites das capacidades institucionais?
Ora, bem antes de 2018, ao considerar que também se classificam como inexistentes os atos cujos objetos sejam juridicamente impossíveis, Celso Antônio Bandeira de Mello parece ter ofertado caminhos que possibilitam agasalhar também as situações teratológicas em que o exercício das competências institucionais tenha se dado em manifesta incompatibilidade com as atribuições do agente público.
Não obstante a constatação da "irrelevante e sem interesse prático" distinção entre nulidade e inexistência, conforme considerara Helly Lopes Meirelles1 - que conceitua "o ato inexistente apenas tem aparência de manifestação regular da Administração, mas que não chega a se aperfeiçoar como ato administrativo" -, o reconhecimento do ato como inexistente evita a sindicabilidade judicial e, por via de consequência, a sobrecarga do Poder Judiciário com demandas manifestamente ilegais, desarrazoadas e que ofendam gravemente o devido processo legal, formal e substantivo.
Com o advento da "nova LINDB", reforçou-se a necessidade de diferenciar as esferas administrativa e judicial da controladora, do que resulta possível concluir a impossibilidade de se reconhecer ao arcabouço conceitual de atos administrativos, pelo menos sem qualquer ressalva, caminho apto a disciplinar o ato controlador.
É bem verdade que essa discussão não se iniciou em 2018. PELEGRINI (2014)2 já reconhecia que as decisões dos Tribunais de Contas não decorrem do exercício da função administrativa, embora revestidas de caráter administrativo. As alterações feitas pela lei 13.655, de 2018, porém, induzem análise conjugada de ato e função, o que encontra reforço interpretativo, hodiernamente, na cabeça do artigo 20 da LINDB, que diferenciou iniludivelmente as esferas administrativa e judicial da controladora.
Sobre esse ponto, importantes são as lições de Pedro José Decomain3, para quem um ato será considerado controlador "quando os atos se destinarem a verificar se a atividade objeto do exame guardou conformação aos parâmetros constitucionais e legais pelas quais deveria ser pautada", reforçando o autor que não há como considerar o ato desempenhado no exercício da função controladora como sendo administrativo, eis que não decorre da prestação direta de serviços públicos, revestindo-se, portanto, de natureza controladora.
Nesse sentido, se levarmos em conta que o conceito de sanção administrativa que tem preponderado no Brasil foi importado da Europa, onde vige o sistema de jurisdição dual, e diante da expressa distinção entre as esferas controladora, administrativa e judicial trazida pela LINDB (art. 20), no campo processual (art. 27) e das sanções (art. 22, §3º), indaga-se: não foram diferenciadas também as sanções administrativas das sanções controladoras decorrentes da atuação dos Tribunais de Contas, criando novos parâmetros de adequação ao princípio do non bis in idem?4
A propósito, numa análise conjugada de competências institucionais e atribuições legais do agente controlador, decisão monocrática em órgão de natureza colegiada lavrada por agente manifestamente incompetente seria causa de inexistência, invalidade ou ineficácia da decisão aparentemente controladora, segundo a escada de Pontes de Miranda?
Ora, se o art. 20 da LINDB for capaz de induzir que a inobservância do dever de abstenção contido no caput5 constitui vício relacionado ao plano da existência do ato administrativo, é até contraintuitivo deixar de considerar vício de mesma ordem os casos em que a manifestação estatal controladora tenha sido materializada por quem seja manifestamente incompetente para a prática dele, notadamente porque não preencheria condições mínimas para entrar no ordenamento jurídico com força cogente.
Isso porque a força cogente dos atos depende, a um só tempo, de pelo menos duas premissas: a competência de quem a proferiu e a aderência às leis, princípios e valores, especialmente quando se leva em conta que o Estado Democrático de Direito contemporâneo conduziu à releitura de institutos clássicos, cedendo espaço para uma Administração Pública responsiva e dialógica, inclusive nas relações de especial sujeição.
Assim, voltando a intercambiar a discussão com os Tribunais de Contas do Brasil, e com lastro na simetria constitucional de que trata o art. 75 da CRFB, há que se questionar se uma decisão monocrática em manifesta inobservância do disposto no art. 1º, §3º, I, da lei 8.443, de 1992 (Lei orgânica do TCU), subscrita por um agente flagrantemente incompetente, goza de presunção de legitimidade apta a sujeitar o agente controlado ao cumprimento do comando decisório.
Se a resposta for afirmativa, estaremos admitindo que a busca pela segurança jurídica na aplicação do direito público brasileiro pode não contemplar o alcance da permanente confiança dos cidadãos na atuação controladora estatal, diante da insegurança jurídica que uma atuação nessas bases gera no âmbito do controle dos atos da Administração Pública, do que resulta possível afirmar que o art. 2º, "a" da lei 4.717, de 1965, que considera nulo o vício de competência, precisa ser lido à luz do novo parâmetro normativo inaugurado pela lei 13.655, de 2018, mirando na interdição dos abusos a que objetivou alcançar a lei 13.869, de 2019.6
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1 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. Editora Malheiros. 26ª edição atualizada. 2000. p. 166.
2 A competência sancionatória do Tribunal de Contas: contornos constitucionais / Marcia Pelegrini; Prefácio José Eduardo Martins Cardozo. - Belo Horizonte: Fórum, 2014. p. 107
3 DECOMAIN, Pedro Roberto. Tribunais de Contas no Brasil. São Paulo: Dialética, 2006, p. 168
4 "É fundamental destacar a autonomia da responsabilização tratada acima [esfera de responsabilidade por irregularidade formal e material de contas]. Por meio dela, a ordem jurídica imputa a conduta funcional ilícita sanções imponíveis, por si só, pelo órgão constitucional auxiliar do Poder Legislativo. A lei dá conta da tipificação das infrações e sanções respectivas. Tais sanções são inconfundíveis com outras que o mesmo fato acarreta quando colhido por esferas de responsabilização distintas. No caso, multa e interdição de direitos." (OLIVEIRA, José Roberto Pimenta. Improbidade administrativa e sua autonomia constitucional. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p.111.)
5 "Não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão"
6 CNJ. RECOMENDAÇÃO N. 92, DE 29 DE MARÇO DE 2021.
*Ismar Viana - Mestre em Direito. Especialista em Direito Administrativo, em "Combate à corrupção: prevenção e repressão aos desvios de recursos públicos" e em Direito Educacional. Professor. Advogado.
*Thaís Marçal - Mestre em Direito pela UERJ. Advogada e árbitra listada no CBMA, CAMES e CAMESC. Coordenadora acadêmica da ESA OAB/RJ.
Publicado orginalmente no Portal Migalhas