*Por Ismar Viana
A Lei n. 14.133, de 2021, que regula as licitações e contratos administrativos, elencou objetivos a serem alcançados por meio dos processos licitatórios, com vistas, inclusive, à promoção de um ambiente íntegro e confiável (art. 11), tratando do controle relacionado à implementação de medidas a serem adotadas pelos responsáveis da alta estrutura estatal (art. 169).
Sem pretensão de exaurir o conteúdo, o debate tem como ponto de partida o sentido e alcance de governança, integridade e confiança, fins a serem alcançados por meio da implementação de programas de gestão de riscos e da estruturação de controles internos.
Esses fins já se inter-relacionam com o art. 11, que trata dos objetivos do processo licitatório: assegurar a vantajosidade das contratações e o tratamento isonômico entre os licitantes, bem como a justa competição; evitar contratações com sobrepreço ou com preços manifestamente inexequíveis e superfaturamento na execução dos contratos; e incentivar a inovação e o desenvolvimento nacional sustentável.
E para alcançar os objetivos elencados no aludido artigo e promover um ambiente íntegro e confiável, o parágrafo único colocou a alta administração do órgão ou entidade como responsável pela governança das contratações, criando para esses agentes públicos o dever de implementar processos e estruturas, inclusive de gestão de riscos e controles internos, com vistas a avaliar, direcionar e monitorar os processos licitatórios e os respectivos contratos.
Diante desse novo panorama legislativo, indaga-se: como transformar o texto em norma, percorrendo da normatividade à efetividade? Primeiro, devemos partir da interpretação sistemática do próprio texto da Lei, buscando os sentidos extraíveis, consoante ensinamentos de Humberto Ávila,[1] a começar por governança.
Ao tratar da governança, MARQUES (2007) pontua que ela se apresenta como as organizações são controladas e dirigidas[2]. Nesse mesmo sentido é o Referencial Básico de Governança do TCU, aplicável a órgãos e entidades da Administração Pública, para o qual “governança pode ser descrita como um sistema pelo qual as organizações são dirigidas, monitoradas e incentivadas, envolvendo os relacionamentos entre sociedade, alta administração, servidores ou colaboradores e órgãos de controle”.[3]
Partindo disso, extrai-se que o processo de escolha de integrantes da alta administração e o provimento de cargos de diretor de controle interno e de controlador interno exercem influência na promoção de ambientes íntegros e confiáveis, constatação que encontra reforço argumentativo também no entendimento do STF, no RE 1.264.676- SC, bem como na Lei n. 14.129, de 2021, que dispõe sobre princípios, regras e instrumentos para o Governo Digital e para o aumento da eficiência pública, e traz a obrigatoriedade de divulgação na internet dos currículos dos ocupantes de cargos de chefia e direção (art. 29, §2°, inciso X), contemplando parâmetros de governança, gestão de riscos, controle e auditoria (artigos 47 a 49).
Quanto à integridade, o Referencial de Combate à Fraude e Corrupção do TCU, ao elencar mecanismos de prevenção à fraude e corrupção, traz como componente a gestão da ética e integridade, consignando que as práticas desse componente “baseiam-se principalmente no exemplo da alta administração, no estabelecimento de códigos, estrutura, comunicação, treinamento, sanções e monitoramento”[4].
A omissão, portanto, na implementação de programas de gestão de ética e integridade, pelos integrantes da alta administração (parágrafo único do art. 11), “manchará a gestão, e qualquer atividade pode levantar dúvidas quanto à legitimidade, probidade e motivação dos seus atos”, nos termos do sobredito Referencial.
Assim, a governança, cujo alcance depende da integridade no âmbito das organizações, busca garantir a permanente confiança dos cidadãos nas instituições, estimulando-os, inclusive, a contratar com a Administração Pública, num ambiente íntegro e confiável, capaz de alcançar a tão almejada vantajosidade nas contratações, fim inalcançável em ambientes permeados por práticas fraudulentas e corruptas, e que repercutem ainda no equilíbrio no mercado.
Para o alcance desses fins, o legislador impôs aos integrantes da alta administração o dever não apenas de implementar a gestão de risco, mas o de estruturar controles internos – dever que abrange o de regulamentar práticas contínuas e permanentes, conforme disposto no §1º do art. 169 da Lei de Licitações e Contratos Administrativos –, não se tratando, pois, de medidas que dependem do livre arbítrio da alta administração, mas de obrigatoriedade a ser objeto de permanente controle pelos Tribunais de Contas (art. 71, IX da CRFB).
E como a própria Lei de Licitações já define o responsável pela estruturação do controle interno, a deliberada omissão dos integrantes da alta administração é enquadrável como irregularidade que configura dano à Administração – notadamente quando se leva em conta o dano à imagem reputacional[5] – a ser apurado pelos Tribunais de Contas, sem prejuízo do dever de cientificação ao Ministério Público e às procuradorias dos entes, por ser configurável como abuso por omissão (art. 71, XI da CRFB), tudo nos termos do inciso II do §3º do art. 169 da Lei n. 14.133, de 2021.
Nesse sentido, a promoção de um ambiente íntegro e confiável a que objetiva alcançar a Nova Lei de Licitações se alinha à busca pela proteção da confiança dos cidadãos nas instituições, vertente do princípio da segurança jurídica, também contemplado no §1º do art. 169, inserto no capítulo destinado ao controle das contratações, do que resulta possível concluir que a governança nas contratações públicas deve, por maior razão, ser objeto de auditorias realizadas pelos Tribunais de Contas do Brasil.
*Ismar Viana, mestre em Direito. Auditor de Controle Externo. Professor. Advogado. Membro do Instituto de Direito Administrativo Sancionador Brasileiro (IDASAN). Presidente da Associação Nacional dos Auditores de Controle Externo dos Tribunais de Contas do Brasil (ANTC)
[1] ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios : da definição à aplicação dos princípios. 19. ed. rev e atua. – São Paulo: Malheiros, 2019. p. 50.
[2] MARQUES, Maria da Conceição da Costa. Aplicação dos princípios da governança corporativa no sector público. RAC, v. 11, n. 2, Abr./Jun. 2007
[3] Brasil. Tribunal de Contas da União. Referencial básico de governança aplicável a órgãos e entidades da administração pública / Tribunal de Contas da União. Versão 2 – Brasília: TCU, Secretaria de Planejamento, Governança e Gestão, 2014. p. 17
[4] Brasil. Tribunal de Contas da União. Referencial de combate a fraude e corrupção: aplicável a órgãos e entidades da Administração Pública / Tribunal de Contas da União. – Brasília : TCU, Coordenação-Geral de Controle Externo dos Serviços Essenciais ao Estado e das Regiões Sul e Centro-Oeste (Coestado), Secretaria de Métodos e Suporte ao Controle Externo (Semec), 2a Edição, 2018. p. 37 [5] BRASIL. STJ. RESP 1.722.423-RJ, Rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, por unanimidade, DJe 18/12/2020
Publicado originalmente no jornal O Estado de São Paulo