A Constituição de 1988 vai completar 32 anos e a sua aplicação, na esfera de controle externo, ainda enfrenta desafios na organização dos tribunais de contas, cujos efeitos se propagam de forma tal que levam ao descrédito do funcionamento e da higidez de suas decisões, comprometendo os fundamentos de um Estado Democrático. A despeito das iniciativas das duas últimas décadas, no intuito de tentar uniformizar a aplicação da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e de outras normas gerais que orientam o federalismo de cooperação brasileiro, há tribunais estaduais e municipais que estão longe de observar, na íntegra, a simetria de organização em relação ao TCU (Tribunal de Contas da União).
Embora a Constituição Federal exija, de forma singular, a organização do quadro próprio de pessoal dos 33 tribunais de contas (art. 73), ainda hoje, passados 32 anos de sua vigência, essa exigência não é observada por inúmeros tribunais de contas estaduais e municipais.
Na esfera federal, referido comando constitucional é rigorosamente cumprido pelo TCU, que dispõe de um corpo técnico integrado por 1.600 auditores de controle externo concursados especificamente para as atividades finalísticas, além de cargos efetivos de natureza administrativa e de apoio técnico para a gestão da referida instituição. Em 1995, a Lei Orgânica do TCU foi alterada para permitir a criação de tão somente 28 cargos comissionados para atuação restrita nos gabinetes dos ministros, muitos dos quais indicam os próprios auditores ou outros servidores concursados para a sua ocupação, de acordo com o grau de complexidade e responsabilidade das tarefas.
As atividades finalísticas de controle externo no TCU, seja no Órgão de Fiscalização e Instrução, seja nos gabinetes, são exercidas exclusivamente pelos auditores concursados, sem a participação de agentes cedidos, comissionados e de qualquer outro estranho ao quadro próprio de pessoal. Ou seja, as funções gratificadas nas unidades de controle externo são, por determinação da própria Lei Orgânica do TCU, ocupadas, obrigatoriamente, por auditores concursados. Tal medida é fundamental para preservar o processo de controle externo de captura por grupos que têm interesses políticos e econômicos em interferir no resultado das decisões.
A manutenção de um quadro próprio de pessoal, com agentes de Estado concursados, não se insere no campo da discricionariedade da gestão administrativa do tribunal, mas sim no da vinculação ao mandamento constitucional que o exige para o exercício do controle externo.
Ao apreciar o pedido de amicus curiae da ANTC (Associação Nacional dos Auditores de Controle Externo dos Tribunais de Contas do Brasil) na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.128, o relator, ministro Marco Aurélio, foi taxativo no sentido de que a “reestruturação do quadro de pessoal do tribunal de contas do Estado de Sergipe” alcança, “de forma direta, a respectiva estrutura organizacional e os direitos subjetivos dos gestores de órgãos e entidades da administração pública”, sendo inequívoca e direta a relação entre o quadro de pessoal e as garantias processuais asseguradas constitucionalmente aos jurisdicionados das Cortes de Contas (art. 73, caput, c/c art. 96, I, ‘a’).
Trata-se de premissa fundamental para organização e funcionamento dos tribunais de contas, com vistas a assegurar não apenas a higidez das fiscalizações de obras, das finanças e de outras políticas públicas, mas também as garantias processuais de pessoas físicas e jurídicas sujeitas ao julgamento de contas, em consonância com a noção de Estado Democrático.
Não obstante o caráter impositivo da Constituição Federal, o Tribunal de Contas do Estado de Alagoas não dispõe de quadro próprio de pessoal completo, eis que nunca realizou concurso público específico para auditor de controle externo, embora a ANTC tenha formulado e apresentado ao referido órgão um anteprojeto de lei em 2013, dentre outras disfunções que fragilizam o sistema de controle externo brasileiro e só contribuem para o aumento da percepção de impunidade no país.
O Tribunal de Contas de Sergipe, a seu turno, é reincidente na indicação –em flagrante conflito e violações constitucionais– de sócio de escritório de advocacia para exercer cargo em comissão em unidade técnica do Órgão de Fiscalização e Instrução, que, pela sua natureza finalística, deve ser ocupado exclusivamente por auditores de carreira. Para coibir esse tipo de prática, em 2017, os promotores do Ministério Público do Estado de Sergipe questionaram a atuação de advogado vinculado a outro escritório de advocacia em cargo comissionado do tribunal de contas, nomeado para exercer a atividade gerencial de diretor de Controle Externo de unidade técnica responsável por fiscalização de obras públicas e auditoria operacional.
Na semana passada, a ANTC precisou intervir na defesa de auditores do TCE-SE, alvos de atuação desrespeitosa e intimidatória por parte de agente comissionado que, apesar de exercer atividade de coordenador em unidade técnica de controle externo, mantém-se vinculado a escritório de advocacia que tem em sua carteira de clientes municípios jurisdicionados do tribunal.
Todos esses desmandos na gestão de pessoal dos tribunais de contas têm sido fator de grande preocupação. Além de violar a exigência constitucional de manutenção do quadro próprio de pessoal para o desempenho das atividades típicas de controle externo, cuja natureza finalística das atribuições do cargo de Auditor, o grau de complexidade e de responsabilidade alcançam as funções gratificadas de direção, chefia e assessoramento no referido órgão, a indicação de agente com tais vínculos profissionais também desconsidera regras básicas do Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil.
Recentemente, a ANTC atuou ativamente, com suas 23 afiliadas, no julgamento pelo Conselho Federal da OAB sobre o exercício da advocacia por Auditores dos Tribunais de Contas. Embora o Conselho tenha reconhecido que a vedação estatutária para o exercício da advocacia (art. 28, II) não alcança os integrantes da carreira dos Auditores de Controle Externo, a decisão é taxativa no sentido de que servidores “podem se enquadrar em outra hipótese legal de enquadramento, a ser aferida em cada caso concreto”. É o caso das atividades de coordenação e direção no âmbito da função finalística de controle externo dos tribunais de contas, que abrange, por exemplo, o encerramento de instruções processuais, podendo ser enquadráveis em outra hipótese de incompatibilidade, a exemplo da previsão do art. 28, III, do Estatuto da Ordem.
A direção de unidades de controle externo dos tribunais de contas por ocupantes de cargos em comissão e, em alguns casos, integrantes de escritórios de advocacia, além de flagrantemente inconstitucional, fragiliza a atuação do próprio tribunal, com repercussões no plano eleitoral, pois, contrariamente ao Auditor concursado, que tem a proteção legal para agir com absoluta independência, o ocupante de cargo em comissão é demissível ad nutum, o que, por si só, o coloca em posição precária, diante de assuntos sensíveis e de graves repercussões, tais como o pleito eleitoral, uma vez que a rejeição de contas constitui a principal causa de inelegibilidade em razão da restrição imposta pela Lei da Ficha Limpa.
Não se pretende, com esta abordagem, atacar ou desacreditar os Advogados vinculados a escritórios, cuja função é essencial à Justiça e ao próprio Estado Democrático, tampouco estabelecer uma cruzada contra comissionados que atuam nos marcos constitucionais. Porém, é preciso ter a devida noção de que a natureza das atividades de auditoria e instrução processual na esfera de controle externo não se conforma com a indicação precária de cargo em comissão ou situações que possam, ainda que potencialmente, configurar conflito de interesse e/ou captação irregular de clientes na advocacia.
Efeitos igualmente corrosivos dessas disfunções são observados no campo das cooperações entre o TCU e os tribunais de contas estaduais e municipais, sendo necessário a Corte de Contas da União rever os termos dos protocolos celebrados com os tribunais dos entes subnacionais, já que a realização de auditorias coordenadas nas políticas públicas nacionais com esses e outros vícios criam um ambiente fértil para questionamentos judiciais sobre a validade jurídica do processo de controle externo realizado por agente desprovido de competência legal para tanto.
O resultado não poderia ser mais desastroso. Para além de desacreditar os tribunais de contas, questionamentos dessa natureza podem ensejar a propositura de ações de improbidade administrativa por desvios que acarretam desperdício de recursos públicos com ações de controle externo que não produzirão os efeitos aos quais se destinam.
Nesse sentido, é precária a tentativa de remediar a ausência de normas gerais de fiscalização financeira exigidas desde a promulgação da Emenda Constitucional nº 40, de 2003, com a celebração de acordos de cooperação e outras iniciativas de entidades de classe e associações de natureza privada que, por vezes, não têm interesse ou força política para enfrentar e resolver os problemas denunciados.
A correção definitiva dessas disfunções e desvios também passa pela uniformização de procedimentos de fiscalização, o que deve ser urgentemente enfrentado pelo Congresso Nacional. Basta, para tanto, a edição da lei complementar prevista constitucionalmente para disciplinar a padronização, por meio de normas gerais, da “fiscalização financeira da administração pública direta e indireta” (art. 163, V), matéria a cargo dos tribunais de contas, do controle interno e do próprio Poder Legislativo.
Fonte: poder360.com.br