MP 966: O QUE SE EXTRAI DA DECISÃO CAUTELAR DO STF?

Por Odilon Cavallari de Oliveira

No dia 21 de maio deste ano, o STF julgou os pedidos de medidas cautelares feitos em sete Ações Diretas de Inconstitucionalidade, oferecidas em face da Medida Provisória 966 e, algumas delas, em face também do art. 28 da LINDB, com redação dada pela Lei 13.655/2018. Do que foi decidido é possível extrair três conclusões, sendo a primeira de natureza processual, a segunda conceitual e a terceira relativa a uma norma de conduta: [1]

Primeira conclusão (de natureza processual): por ausência de perigo da demora, o STF deixou para o julgamento de mérito a análise da alegação de inconstitucionalidade do art. 28 da LINDB, por ofensa ao art. 37, §6º, da Constituição Federal, ao restringir o direito de regresso da Administração Pública contra o servidor causador de dano ao Erário às hipóteses de dolo ou erro grosseiro, diferentemente do texto constitucional que prevê dolo ou culpa.

Segunda conclusão (de natureza conceitual): o conceito de erro grosseiro, não definido pelo art. 28 da LINDB, mas sim pelo art. 2º da MP 966, ganhou uma definição adicional, qual seja, a de que é também erro grosseiro “o ato administrativo que ensejar violação ao direito à vida, à saúde, ao meio ambiente equilibrado ou impactos adversos à economia, por inobservância: (i) de normas e critérios científicos e técnicos; ou (ii) dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção” (conforme constou da tese 1 do julgado).

Terceira conclusão (relativa a uma norma de conduta): Na tese 2 do julgado disse o STF o seguinte: “A autoridade a quem compete decidir deve exigir que as opiniões técnicas em que baseará sua decisão tratem expressamente: (i) das normas e critérios científicos e técnicos aplicáveis à matéria, tal como estabelecidos por organizações e entidades internacional e nacionalmente reconhecidas; e (ii) da observância dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção, sob pena de se tornarem corresponsáveis por eventuais violações a direitos”. O STF estabeleceu, portanto, duas normas de conduta, com dois destinatários: primeiro, a autoridade competente, que deve exigir opiniões técnicas bem fundamentadas; segundo, os pareceristas, que devem emitir opiniões técnicas bem fundamentadas, sob pena de se tornarem corresponsáveis por eventuais violações a direitos.

Ambas as teses fixadas pelo STF evidenciam a importância de uma atuação técnica e prudente do agente público. Técnica porque aderente às normas e critérios técnicos e científicos. Prudente em virtude do respeito aos princípios da precaução e da prevenção que, conforme observa Juarez Freitas, não se aplicam apenas em matéria ambiental, mas sim à atividade administrativa como um todo, pois são princípios vetores do direito administrativo. [2] Das duas teses fixadas pelo STF decorre o rechaço veemente à atuação voluntarista do agente público, muitas vezes baseada unicamente no achismo, no palpite, na improvisação, no atropelo, sem o devido planejamento nem estudos prévios que, muitas vezes, transforma a Administração Pública em verdadeiro laboratório do amadorismo. Mas há aqui duas situações que precisam ser bem delineadas.

A primeira é a do gestor que, por razões alheias à sua vontade, não dispõe do assessoramento necessário, para a tomada de decisões. Nessas hipóteses, é preciso, por óbvio, considerar essas circunstâncias atenuantes e fazer incidir, na espécie, o disposto no art. 3º, inciso I, da MP 966, no sentido de que “Art. 3º Na aferição da ocorrência do erro grosseiro serão considerados: I – os obstáculos e as dificuldades reais do agente público;”. A expressão contida nesse inciso I tem origem no art. 22 da LINDB, com redação dada pela Lei 13.655/2018, com o seguinte teor: “Na interpretação das normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e dificuldades reais do gestor …”.

Como se vê, a MP 966, em técnica legislativa bem superior à da Lei 13.655/2018, que alterou a LINDB, desvinculou a expressão “obstáculos e dificuldades reais” da “interpretação das normas sobre gestão pública” e a situou dentro do art. 3º que trata sobre critérios de aferição do erro grosseiro e, portanto, trata sobre a conduta do agente público. Esse aperfeiçoamento realizado pela MP 966 em relação à LINDB resolve um problema que havia sido apontado pelo Tribunal de Contas da União, quando das discussões do então PL 7.448/2017, posteriormente convertido na Lei 13.655/2018, no sentido de que, da forma como estava redigido o art. 22, abriria espaço para interpretações casuísticas, inclusive da Lei de Responsabilidade Fiscal, que variariam de acordo com obstáculos e dificuldades circunstanciais alegados pelo agente público.

Como se disse naquela oportunidade, “obstáculos e dificuldades reais do gestor” devem ser considerados pelo julgador, não para pautar a interpretação sobre normas, sob pena de ilegítimo casuísmo, mas sim para avaliar a conduta do agente público, como, aliás, é a vasta jurisprudência do TCU, conforme reconheceram os autores da citada Lei, no parecer elaborado em resposta à análise preliminar da Consultoria Jurídica da Corte de Contas. Felizmente, a MP 966 corrige o problema da Lei 13.655/2018 apontado pelo TCU.

Há, contudo, entre outras, a seguinte questão a merecer aperfeiçoamento na MP 966 e que deveria ter constado da Lei 13.655/2018, a fim de evitar o mau uso da norma. É prudente que conste da MP 966 a ressalva de que os obstáculos e dificuldades reais do agente público não descaracterizarão o erro grosseiro se ficar demonstrado que o agente público, por ação ou omissão: I) deu-lhes causa; ou II) concorreu para o seu surgimento ou permanência; ou III) não procurou, dentro de suas possibilidades e circunstâncias, superá-los.

Se as observações acima dizem respeito às dificuldades do agente público, é preciso, por outro lado, avaliar as suas facilidades. E esta é a segunda situação, antes referida, que precisa ser considerada para bem aplicar a decisão do STF. São os casos nos quais o gestor dispõe de qualificada assessoria e órgãos técnicos, jurídicos e científicos, mas simplesmente os ignora ou injustificadamente os contraria.

A preocupação demonstrada pelo STF com a questão encontra justificativa na triste realidade da Administração Pública brasileira que, ainda hoje, conta com número indesejável de gestores que desprezam as opiniões técnicas, jurídicas e científicas e também com número indesejável de pareceristas que preferem a retórica à análise fundamentada dos casos concretos que lhes são submetidos, emitindo pareceres inconclusos e genéricos, o que, por um lado, concede ampla margem de interpretação para o gestor desonesto e, por outro, conduz ao desamparo técnico do gestor honesto.

Não por outra razão, quem conhece a jurisprudência do TCU sabe que o Tribunal tem remansosa jurisprudência de prestígio ao gestor que age de boa-fé, amparado em parecer técnico ou jurídico, tanto que até, aproximadamente, o ano de 2000, o TCU isentava de responsabilidade o gestor que agia amparado em parecer jurídico, independentemente, portanto, do teor do parecer.

Porém, a identificação de elevado número de pareceres absolutamente infundados e até mesmo, em alguns casos, com suspeitas de serem de encomenda, fez o Tribunal ajustar o seu entendimento, para ressalvar que, em regra, o gestor poderá ser isento de responsabilidade, se amparado em parecer técnico ou jurídico, desde que devidamente fundamentado. Por outro lado, o TCU, com base na doutrina da Maria Silvia Zanella Di Pietro, passou a responsabilizar pareceristas jurídicos nas hipóteses referidas pela jurista, ou seja, quando os pareceres não estão devidamente fundamentados, não defendem tese aceitável, e não estão alicerçados em lição de doutrina ou de jurisprudência. [3]

Desse modo, a decisão do STF introduz importante norma de conduta ausente na MP 966. Os projetos que deram origem à Lei 13.655/2018 haviam tangenciado o tema no §1º do art. 28, com a seguinte redação: “Não se considera erro grosseiro a decisão ou opinião baseada em jurisprudência ou doutrina, ainda que não pacificadas, em orientação geral ou, ainda, em interpretação razoável, mesmo que não venha a ser posteriormente aceita por órgãos de controle ou judiciais”. Note-se que diferentemente da doutrina da Zanella Di Pietro, adotada pelo TCU, e contrariamente à recente decisão do STF, esse §1º sequer exigia que a interpretação baseada em doutrina ou jurisprudência minoritária fosse razoável (atente-se para a conjunção alternativa “ou”, constante do citado dispositivo). Referido dispositivo foi, felizmente, vetado pelo Presidente da República.

Portanto, a título de conclusão, a decisão do STF enfatiza a importância de exigir de todos uma atuação técnica e devidamente fundamentada. Isso vale para todos. E, pelos votos orais, talvez possa ser extraída uma quarta conclusão do julgamento do STF sobre a MP 966: é importante que o gestor atue em ambiente de segurança jurídica, assim como é importante que se prestigie a accountability e a responsabilidade pelos atos de quem os pratica.

Por fim, é de se esperar que a tramitação da MP 966 percorra caminhos bem distintos daqueles percorridos pelos projetos de lei que precederam a Lei 13.655/2018 (PLS 349/2015, no Senado, e PL 7.448/2017, na Câmara), aprovados em ambas as casas em caráter conclusivo, ou seja, apenas nas Comissões, sem apreciação do Plenário. Além disso, no Senado Federal houve a realização de apenas uma audiência, para a qual os principais destinatários da norma (os órgãos de controle, ministérios públicos e Poder Judiciário) não foram convidados. Na Câmara dos Deputados não houve a realização de sequer uma audiência. Ninguém debateu.

A Lei 13.655/2018 foi à sanção presidencial contendo 35 dispositivos, entre caput, parágrafos e incisos, espalhados por 11 artigos. Saiu da Presidência da República com nada menos do que 11 dispositivos vetados, inclusive com o veto integral, de natureza jurídica, e não política, ao art. 25, por ofensa à Constituição Federal, exatamente na mesma linha da contundente manifestação do ministro Carlos Ayres Britto que, com o seu reconhecido saber jurídico e qualificada eloquência, classificou especificamente esse art. 25 como uma “inconstitucionalidade enlouquecida”. No entanto, talvez alguns desses vetos pudessem ter sido evitados, com o aprimoramento da redação de alguns dispositivos, o que, provavelmente, ocorreria se tivessem sido realizados os necessários debates, anteriormente à aprovação dessa lei, e com a participação dos principais destinatários dessa norma.

Também por essas razões, o debate público precisa ser incentivado, de modo plural e respeitoso às divergências. Ninguém é senhor da razão, motivo pelo qual a humildade é uma virtude a ser cultivada por todos, em homenagem ao bom e democrático debate. Cada um tem, com a sua visão de mundo e experiência profissional, condições de contribuir para a construção de soluções que aprimorem a legislação, a doutrina e a jurisprudência, em benefício da sociedade. É importante, no entanto, que as novas ideias sejam submetidas à análise não apenas daqueles que provavelmente a aplaudirão, mas principalmente daqueles que a criticarão. Karl Popper muito ensinou sobre a importância desse procedimento. [4]

Que a tramitação da MP 966, diferentemente da Lei 13.655/2018, seja precedida de ampla discussão, enriquecida, agora, com os importantes entendimentos firmados pelo STF no recente julgamento das sete ADIs oferecidas em face da citada medida provisória. Quem ganha com isso é a sociedade.


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[1] As opiniões expressas ao longo deste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não representam, portanto, necessariamente, o entendimento do TCU, instituição na qual trabalha o autor.

[2] FREITAS, Juarez. Discricionariedade administrativa e o direito fundamental à boa administração pública. São Paulo: Malheiros Editores, 2007, p. 96.

[3] Cf, entre tantos outros: BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão nº 1.349/2008 – Plenário. Rel. Min. Augusto Nardes.

[4] Cf: POPPER, Karl. O mito do contexto: em defesa da ciência e da racionalidade. Lisboa. Edições 70. 1996, p. 114-117.

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ODILON CAVALLARI DE OLIVEIRA – Doutorando em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (UniCeub). Mestre em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Assessor de Ministro do TCU. Auditor Federal de Controle Externo. Advogado.


Fonte: jota.info.

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