Pandemia, contas públicas e função de auditoria dos tribunais de contas, escreve Ismar Viana

Ismar Viana*

Não é surpresa que o enfrentamento à covid-19 trouxe consigo inúmeras alterações legislativas, flexibilizando normas de gestão dos recursos públicos para que o poder público desse respostas rápidas na contenção dos efeitos da pandemia. Além dessa permissividade normativa, as operações policiais noticiadas e a instalação de uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) têm levado a sociedade a questionar a efetividade da atuação dos tribunais de contas.

Por um lado, há preocupação com que o excesso de controle venha a comprometer a eficácia das medidas sanitárias; por outro, há preocupação com que a deficiência do controle estimule o emprego irregular de verbas públicas, associado à má gestão, fraude e corrupção.

A indagação é pertinente. A jurisdição dos tribunais de contas abrange os 26 Estados, 5.568 municípios, o Distrito Federal e a União. Isso posiciona essas instituições em diferenciado patamar de controle, na medida em que possibilita a sistematização de dados de compras públicas, serviços contratados, fornecedores, receitas e despesas públicas de todos os entes federados, viabilizando cruzamentos e transformação desses dados em informações íntegras e confiáveis, cujo bom e regular uso representa eficiente instrumento indutor de efetividade na aplicação de recursos públicos, inibindo desvios e condutas lesivas.

Contudo, para aferir a efetividade do controle externo exercido pelos tribunais de contas, é necessário buscar respostas para 4 indagações, pelo menos: se há critérios para a seletividade das auditorias; a quem cabe a condução das atividades de fiscalização e instrução processual das denúncias e representações que chegam ao tribunal de contas; se os agentes controladores estão suscetíveis a pressões ilegítimas ou se há garantias que possam resistir a essas pressões; e se as instruções processuais e os julgamentos observam o devido processo legal na esfera de controle externo (sem o qual podem ser anulados).

A ausência de critérios de seletividade nas auditorias enseja alto grau de risco de direcionamentos indevidos, seja por deixar de auditar o que deveria, seja para deslocar as auditorias para operações de menor risco. De igual forma, se o planejamento, a coordenação, a execução e o monitoramento das auditorias não forem efetivamente desempenhados por auditores de controle externo –com qualificação adequada, independência e competência legal plena para a prática desses atos controladores– haverá transgressão legal e ofensa a princípios nacionais e internacionais de auditoria do setor público, esvaziando a efetividade do controle e colocando em risco de nulidade todos os trabalhos.

Ninguém conseguiria imaginar uma “fiscalização” realizada por agente nomeado à escolha de alguma autoridade, que também decide livremente sobre sua demissão, caso contrariada. Seja nos tribunais de contas ou no Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), na pandemia ou em períodos de normalidade, essa situação é o que concretiza o famoso “parecer-caneta”: decisões ilegítimas alicerçadas em direcionamentos ou interferências em pareceres que deveriam ser técnicos e independentes.

Vínculos precários não sobrevivem a riscos, pressões políticas e sazonalidades. Não por outra razão, a Constituição de 1988 garantiu proteção especial aos que exercem atividades exclusivas de Estado, como é o caso de fiscalizações e auditorias.

Ensina o professor Juarez Freitas que só é possível o alcance da segurança da sociedade e a eficiência do serviço público se for reservado aos “ocupantes de certos cargos efetivos um tratamento especial, apto a propiciar a formação de uma carreira com o irrenunciável e profissional atributo da competência e capaz de colocar seus membros a salvo das cooptações partidárias, da descontinuidade governativa”.

A título de exemplo, não fossem a independência e a estabilidade, a auditora de controle externo do TCE-MA (Tribunal de Contas do Estado do Maranhão) poderia não ter conseguido apurar possíveis desvios na compra de respiradores, conforme revela reportagem intitulada “Auditoria do TCE dá parecer contrário a sigilo pedido por Lula”.

Ou talvez a imprensa não tivesse conseguido divulgar que Auditoria do TCM vê excesso de cargos comissionados na Prefeitura de SP e ‘desvio de finalidade’ em contratações, em cujo relatório se evidencia que secretarias de Turismo e da Justiça têm mais de 90% dos servidores oriundos de indicação política e em desvio de finalidade, o que levou os auditores de controle externo a opinarem pela cientificação ao MP-SP (Ministério Público de São Paulo), para fins de ajuizamento de ações de improbidade administrativa.

Noutro giro, diante de reportagem de mesma data noticiando que a “CPI da Pandemia tem relatório com irregularidades em contratos de R$ 12,9 milhões do Governo de MS, constata-se que, apesar da existência do Relatório de Auditoria elaborado pelos auditores de controle externo do TCE/MS (Tribunal de Contas do Estado de Mato Grosso do Sul), tecnicamente fundamentado e alicerçado em evidências, o processo se encontra com o relator, desde setembro do ano passado.

Essas atuações têm em comum a tempestividade da fiscalização/auditoria e de instruções processuais. Porém, no modelo de Entidade de Auditoria Superior adotado pelo Brasil –Tribunais de Contas–, a tempestividade na fase investigativa/instrutória, por si só, não induz efetividade plena do controle, que depende também da tempestividade de julgamento.

Retardos nos julgamentos podem causar prescrição das penalidades e até mesmo da recuperação de valores aos cofres públicos, atrasando também a comunicação da irregularidade a outras esferas de responsabilização, que têm seus próprios regramentos de prescrição.

Essa situação se agrava quando não é dada transparência aos relatórios de auditoria e sua disponibilização fica dependendo das deliberações do colegiado julgador. Foi o que aconteceu, recentemente, no TCE-PI (Tribunal de Contas do Piauí), que, ao deixar de publicar os relatórios dos auditores, levou o Ministério Público a emitir nota criticando a medida e considerando o sigilo como um retrocesso no combate à corrupção naquele estado.

Isso porque, no exercício das suas atividades, os auditores de controle externo identificam, recorrentemente, atos que configuram, em tese, improbidade administrativa ou ilícitos penais. A título de exemplo, nas auditorias de folhas de pagamento e de atos de pessoal têm sido identificadas situações de nepotismo, indícios de “rachadinha”.

Auditorias de licitações, contratos e processos de despesas em geral revelam, não raro, situações que configuram o crime de fraude em licitação ou contrato, peculato, emprego irregular de verbas públicas, prevaricação, corrupção ativa e passiva, falsidade documental, e que induzem à ciência ao Ministério Público.

Não há que se falar, portanto, em efetividade dos tribunais de contas, que abrangem função de investigação (auditoria, fiscalização e instrução) e de julgamento, e cujas decisões advêm da conclusividade instrutória, sem a independência funcional e a imparcialidade do auditor de controle externo –agente controlador que primeiro lança luz nos atos e fatos–, atributos que emergem do dever de respeito ao devido processo legal na esfera de controle externo.

Essa é a passagem necessária para a segurança jurídica que legitima a relação entre o direito de pedir contas e o dever de prestar contas dos atos praticados no âmbito da função administrativa, de modo que a não observância desses atributos induz à precariedade e inefetividade do controle, apropriadamente denominado de controle de mera aparência, eis que o fim a que se presta é o de conferir aparência de legitimidade a atos lesivos ao patrimônio público.

* Ismar Viana é mestre em Direito. Auditor de Controle Externo. Advogado. Professor. Membro do Instituto de Direito Administrativo Sancionador Brasileiro (IDASAN). Presidente da Associação Nacional dos Auditores de Controle Externo dos Tribunais de Contas do Brasil (ANTC).
 

Artigo originalmente publicado, em 25/6/21, no portal Poder 360.

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